Trending

Coluna MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS: CA´HEHXY – Memórias da Indígena de 104 anos


CA´HEHXY – Memórias da Indígena de 104 anos

*Por Francisco Carlos Machado

Ca´hehxy, a indígena mais idosa do povo Krikati viveu 104 anos. A bem da verdade ela viveu 103 anos, 11 meses e 18 dias, pois no dia 21 de janeiro deste ano ela nos deixou, voltando para a Origem de sua existência, encontrando seus ancestrais e ao marido Tataíra, a lendária figura dos Krikati, falecido  aos 103 anos completos.

Ca´hehxy

A tradução para o nome Ca´hehxy na língua jê Krikati é “bagaço amargo”.  Entretanto, de amargo ela nada tinha. Era elegante, com olhar penetrante.  E como todo Krikati possui um nome em português, o seu era Eva.  A mãe de todos nós.

 Eva, essa centenária amiga morava atrás da casa da mãe Maria José, sua filha, minha mãe “adotiva” na aldeia São José. O clã dela me hospeda nesta aldeia.  

Agora em  2022 faz 10 anos que conheço Eva. Ela nasceu em 1918, no final da primeira guerra mundial. Quando Curt Nimuendajú, o maior etnólogo brasileiro/alemão veio estudar os Krikati, em 1919, Eva estava com 1 ano de vida. Era um tempo difícil para estes indígenas. Quando Nimuendajú voltou, em 1930, Eva Ca´hehxy estava com 11 anos. Ela estão conheceu Curt Nimuendajú. Os escritos de Nimuendajú em inglês levaram os timbiras, como os da etnia Krikati, ser conhecidos no mundo. E certamente, o impacto positivo causado pelos estudos desse etnólogo repercutiu para Eva chegar aos 104 anos.

  Nesta manhã, enquanto pensava em Eva, conclui pela primeira vez que ela conheceu o Nimuendajú. Porém, em vida eu não perguntei pra ela. Aliás, mesmo tendo muitas oportunidades de estar com Eva na aldeia, pouco com ela conversava. O português falado por ela  era muito pouco e eu agora que estou entendendo o Krikati. E nas poucas vezes que Eva falava comigo era afirmando que queria “bulanha”. Assim,  tinha de trazer “bulanha” pra ela quando chegasse. Era uma   maravilha de graça e encanto, Eva, em seu português puxado me pedir “bulanha”.

Agora essa é a memória mais cativante que permanece dentro de mim dela.

Ca´hehxy, embora tenha falecido em janeiro de 2022, soube apenas um mês atrás. E estando hoje dia 30 de julho entre os Krikati, tive a felicidade de celebrar a vida e a morte de dela correndo com a tora de barriguda de 200 quilos, em um percurso de 9 km. Eu não sei carregar no ombro a tora, mas corri no sol quente todo o percurso até o pátio da aldeia.

Corrida de TORA da BARRIGUDA de C'ahehxy 

A Corrida da tora de Barriguda é um rito fúnebre essencial na cultura Krikati. Entre eles quando morre um dos seus, até acontecer a festa/corrida da barriguda, os estes queridos (a família, os amigos próximos) entram de  luto  por meses. Assim,  é  tempo em que barba e cabelos de homens e mulheres crescem. Os cantores da aldeia cantam no pátio com quem desejar, durante todo período, em dias alternados, em memória do falecido.

Chegada de tora no pátio da Aldeia

 O clã de Eva estando há 6 meses está de luto. Amanhã ele é concluído  com a corrida da barriguda dos homens. Nesta corrida existe tradição, esforços, suor e lágrimas. Se vivi todos esses sentimentos envolvidos na maratona. 

No dia de hoje acordei  às 4 da madrugada, indo para o pátio ouvir os cantores.  A fogueira da Dança do Fogo (outro rito fúnebre) acesso no começo da noite, ainda aquecia a todos.   Quando tudo pronto, a claridade dominando tudo, se iniciou  a corrida de tora das mulheres. Ao  chegar os dois partidos femininos  no  pátio da aldeia circular, chorei a vida e morte de Eva, cabisbaixo, segurando uma das  toras, dizendo pra ela: - “Sentimos sua falta”.

Espírito agora encantado, Eva não me ouviu. As lembranças de sua vida e da festa do encerramento da sua morte/luto, serão guardadas em nossas memórias através das centenas de fotos  dos corpos pintados; na farta comida distribuída para os participantes; os dois presentes trocados  entre os compadres dela e  nas duas toras do partido de baixo e de cima preservadas na Biblioteca  da aldeia e em dois museus, tendo  uma foto de Eva Ca´hehxy,  indígena que viveu em 104 anos. 

 

Francisco Carlos Machado

SOBRE O AUTOR

Francisco Carlos Machado - Escritor, poeta, professor, titular da cadeira nº 20 da Academia Buritiense de Artes Letras e Ciências (ABALC). 

Postar um comentário

O comentário não representa a opinião do blog; a responsabilidade é do autor da mensagem. Ofensas pessoais, mensagens preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, ou ainda acusações levianas não serão aceitas. O objetivo do painel de comentários é promover o debate mais livre possível, respeitando o mínimo de bom senso e civilidade. O Redator-Chefe deste CORREIO poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema proposto.

Postagem Anterior Próxima Postagem
header ads
header ads
header ads