Comentários sobre as enroscadas do STF.
A JUSTIÇA COM “MOELA” É
Creio
que ninguém desconhece a palavra “moela”, que se
define como “parte do sistema digestivo das aves”. Realiza a digestão mecânica dos
alimentos. Na boca das aves não há dentes, mas um bico que é adaptado ao tipo
de alimentação mais comum de cada espécie. À boca, segue-se a faringe e, no
esôfago, é encontrada uma bolsa chamada papo. Embora a sílaba “MO” seja escrita
com a letra “o”, pronuncia-se, quase sempre, com o som da letra “U”, como se a
pronúncia fosse “muela”
Mas,
se todos sabemos o que é moela, creio
que nem todos sabem o significado da palavra “cacofonia”, que é um vício de
linguagem muito comum na língua portuguesa, que ocorre quando uma palavra ou
sílaba, em união, formam expressões com sons desagradáveis ou ambíguas, isto é,
com significado duplo. Exemplo comum:
“uma mão” (um mamão?)
O
título deste texto traz uma cacofonia: “comuela”. Não faz mal, pois o imortal cronista
Nelson Rodrigues nos legou o sempre
lembrado livro “A vida como ela é”, composto
de crônicas imemoráveis nos anos 50 do século passado.
Não foi
sem razão que me vali de uma cacofonia no título desta narrativa,
porquanto os comentários a seguir desenvolvidos buscam demonstrar o quanto a
Suprema Corte de Justiça brasileira está precisando de uma moela, para digerir
questões sobre a mesa dos onze ilustres Ministros, escolhidos, sabatinados e
nomeados por suas condutas ilibadas e por seus notórios saberes jurídicos,
qualidades que a Constituição Federal exige para tão elevado posto em um dos
Poderes da República: o JUDICIÁRIO.
Com
efeito, há poucos dias, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos seus
11 Ministros, decidiu uma questão polêmica, justamente porque a matéria é
lacunosa na legislação infraconstitucional, ou seja, não há previsão legal para
a solução do caso. Tratava-se de um habeas
corpus impetrado por um condenado na chamada “Operação Lava Jato”, que
reclamava ter tido prazo comum para “delator” e “delatado” apresentarem alegações finais no processo em que
fora acusado, circunstância que, para a sua perspicaz defesa, feria os
princípios da ampla defesa e do contraditório e, portanto, matéria
constitucional passível de exame pela mais alta Corte Judiciária, à qual
compete interpretar a Constituição, em suas mais diferentes nuances. A Segunda
Turma daquele excelso Tribunal, dias antes, já havia decidido pela anulação
da sentença condenatória de um
réu, ex-Diretor do Banco do Brasil e da Petrobrás. Nesse julgamento de
Turma (composta por 5 Ministros), foi acolhida tese de ofensa aos tais
princípios constitucionais (ampla defesa e contraditório). O Ministro Edson
Fachin, que era o Relator, fora vencido e, por isso, decidiu levar outro
caso semelhante ao Plenário, para que houvesse uma orientação definitiva sobre a
tese. O resultado, como já dito, foi a confirmação do entendimento esposado
pela 2ª. Turma, qual seja, havendo delação “premiada” devidamente homologada, o
acusado “delatado” tem o direito a apresentar as alegações finais depois das
que foram produzidas pelo “delator”; é dizer, cada um com seu prazo para os
últimos “suspiros”. O fundamento acolhido pela maioria do Colegiado foi o de que o “prazo comum”
ofendeu os princípios da ampla defesa e do contraditório.
No caso, se a chamada “Lei da
Delação Premiada” não trata da matéria, cabe ao STF dirimir a controvérsia,
como intérprete maior da Constituição Federal. A propósito, chamou-me a atenção
o fato de que, durante as discussões, ninguém – nem mesmo o Ministro Luiz Fux, que participara da elaboração
do Projeto do novo Código de Processo Civil - se lembrou do artigo 140 deste Código
(aplicável, subsidiariamente, ao processo penal), segundo o qual “o juiz não se exime de decidir sob alegação
de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”. Assim, a meu pensar,
agiu bem o STF em discutir a matéria lacunosa no ordenamento jurídico hierarquicamente
inferior à Constituição.
Ocorre
que, após firmada a maioria, os Senhores Ministros não souberam, naquele
momento, o que fazer de sua decisão, isto é, se ela pode ser aplicada a todos os casos iguais; se seus
efeitos se estendem a casos similares pretéritos ou somente a casos novos, de
agora em diante; se serão beneficiados somente os que levantaram a tese de o “delatado”
manifestar-se depois do “delator”, em sede de alegações finais; se outros
acusados “delatados” – mesmo em processos fora da “Operação Lava Jato” -,
poderão suscitar a tese, ainda que
estejam cumprindo a pena que lhes foi imposta e já tenham esgotados todos os
recursos, ou se não mais podem alegar a “auspiciosa” tese, por ter sido operada
a preclusão, vale fizer, passou o momento processual. Na compreensão vulgar:
“dormiu no ponto”.
A
imprensa divulga a informação de que, se a decisão for aplicada a todos os réus
condenados na mesma situação do caso julgado, serão beneficiados cerca de 140
réus condenados em algumas dezenas de processos. Para muitos, seria “o fim da
Lava Jato”, ou, se não isso, um “duro golpe” para o combate à corrupção, configurando-se,
escancaradamente, a consagração da impunidade, compreensivelmente repelida pela
sociedade. Não se arvore o Senhor Moro de ser o único a sustentar esse
entendimento. Calma! Essa bandeira não somente sua.
Retomando
o tema, ouviu-se do bico presidencial que a decisão deverá ser aplicada somente
aos casos nos quais os réus tenham suscitado a tese e, além disso, comprovem
efetivo prejuízo. Seria oportuno lembrar o brocardo, segundo qual “somente quem
calça os sapatos pode reclamar os calos”. Se a simples condenação não se
configurar “prejuízo”, a absolvição é que não causa. O óbvio salta aos olhos,
de inopino, foi pautado o famoso processo que reexamina a “prisão sem segunda
instância”, cujo fim não se sabe.
Vê-se,
portanto, que a Corte Maior de Justiça do Brasil enrolou-se toda e está diante
de um trilema, o que justificou o
adiamento da conclusão do julgamento do processo. Segundo entrevista do
Ministro-Presidente, essa conclusão poderá ocorrer ainda
neste mês de outubro. É esperar para ver, pois, inesperadamente, entrou em
pauta na semana passada o reexame da execução
provisória, quando a sentença for confirmada na segunda instância. Lembro
que, sobre esse assunto, já produzi um texto, marcando minha posição a favor da
tese da “presunção de inocência” até o último recurso possível.
De
qualquer forma, o processo que motiva este comentário – alegações finais -, ainda comporta outras considerações que não
foram discutidas pelos sábios Julgadores e que poderá embargos declaratórios, a
conferir. Dou exemplos: a) se as
sentenças condenatórias de mais de uma centena se referem somente aos casos ligados
à “Lava Jato”; b) se forem anuladas - mesmo nas condições sugeridas pelo
Presidente doa Suprema Corte, como ficarão os réus de outros casos, que não
tiveram advogados habilidosos para alegarem a tese? Se assim for, quebrar-se-á
o princípio da isonomia, ou seja, o princípio da IGUALDADE, que está na cabeça
do artigo quinto (5°) da Constituição (“todos
são iguais perante a lei”). Se isso vier a ocorrer, restará desatendido o
mencionado princípio, criando-se uma situação de flagrante injustiça; c) a ideia
sustentada pela Ministra Carmem Lúcia
e acompanhada pelo Ministro Dias Toffoli
- no sentido de que os réus devem “comprovar prejuízos” -, estão estes
implícito ou não na própria condenações? A meu juízo, sim.
Todos
esses questionamentos permearão o julgamento final desse rumoroso habeas corpus. É o Direito em ação; é a
Ciência Jurídica desafiando raciocínios de juristas e leigos, tudo em nome da
Justiça; tudo em respeito à chamada “segurança jurídica”, que se harmoniza com o
desejo coletivo de combate à corrupção e impunidade, mas tudo nos limites da
lei.
Enquanto
isso, o Brasil patina, a economia não deslancha, o desemprego continua em
níveis elevados, e os Poderes da República se digladiam na busca de
protagonismos oportunistas. E, para completar esse quadro desalentador, ainda
se assiste ao espetaculoso pugilismo político envolvendo a “Família Real” com
líderes do seu Partido, tudo indicando que o “pano de fundo” é o gordo “Fundo
Eleitoral” para as próximas eleições. É o que a mídia especula.
Haja
patriotismo! Haja paciência! Haja tolerância com os impropérios diários dos que
se arvoram de “líderes”! Haja moelas para a digestão de comidas
engolidas, com ou sem cacofonias, na construção de letras sem maestros e sinfonias!!!
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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Coluna do Benedito