A via judicial contra práticas
nocivas de agentes públicos
AÇÃO POPULAR: ARMA JUDICIAL DO POVO
*Por Benedito Ferreira Marques
“O
que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.
(Martin Luther King)
Duas
semanas atrás, ocupei o espaço desta coluna com um indignado texto contra o
desmatamento de uma área de 2.000 hectares de terras, no povoado “Brejão”, em
Buriti (MA). Dei ao escrito um título substancialmente apocalíptico: “Desertificação
conscientemente criminosa”. Não era para menos, pois o cenário filmado
em vídeo que me chegara em mãos era aterrorizante: quatro tratores possantes
com correntões inquebráveis derrubavam, impiedosamente, palmeiras seculares,
para cederem espaço aos plantios de soja e outros grãos, todos destinados à
exportação para o exterior. Concluí-o em
tom de desabafo e incitei o povo a reagir, fosse por meio de mobilizações de
segmentos sociais conscientizados, fosse por vias judiciais. Esqueci-me, no
entanto, de apontar os caminhos da judicialização da tragédia ambiental,
supondo que a Comarca dispunha de Promotor de Justiça. Já soube que está provida
do representante do Ministério Público.
Na
condição de advogado – ainda que a distância me separe do locus -, sinto-me no dever de indicar, ao menos, os passos
reclamados por uma atuante líder da comunidade buritiense, também indignada com
a situação por que passa a nossa terra-berço comum, palco de destruição das
matas nativas, em boa parte frutíferas, e sem perspectivas de recuperação,
senão a longuíssimo prazo, que a geração atual não verá.
Estou
informado de que as nossas chapadas, em parte considerável, se situavam em terras
devoluta estaduais, ocupáveis ao talante de quem pudesse adentrá-las
sem resmungos alheios. A par de conhecer a historiografia fundiária de nosso
País, também sei que as terras devolutas não se confundem com terras do patrimônio privado, por isso que aquelas
sempre foram classificadas na categoria de “terras
públicas”, mas suscetíveis de regularização
perante os órgãos para esse fim instituídos. Esse procedimento - conhecido desde a primeira “Lei de Terras”,
no Brasil, (Lei 601, de 18.9.1850) -, compreende a regularização em si mesma, de áreas maiores, e a legitimação de pequenas posses.
Trata-se, portanto, de antigos instrumentos pelos quais se transformam as terras públicas
em particulares, observados, evidentemente, os procedimentos legalmente
estabelecidos.
No
caso do Maranhão, consta-me que há um órgão que obedece a sigla ITERMA, por
onde tramitam os processos de regularização fundiária, inclusive os de
legitimação (áreas não superiores a 100 hectares). Também me consta que há um órgão
estatal para cuidar das questões
ambientais, no caso, sob a sigla SEMA. Assim, há dois órgãos estaduais que
podem ser acionados no Juízo competente, em litisconsorte com o próprio Estado,
conforme a Lei de Organização Judiciária daquela Unidade Federativa. Além disso – ainda sobre as políticas
ambientais -, há os órgãos federais IBAMA e ICMbio (Instituto Chico Mendes).
Vale dizer, não faltam órgãos de fiscalização.
O
desmatamento irrefreável das chapadas em vários municípios maranhenses e de
vários outros estados, tem sido apresentado como parte de política de desenvolvimento, fortemente embalada pelo agronegócio, responsável pelo plantio de
grãos em grande escala, o que demanda, cada vez mais, o aumento de áreas de
expansão da atividade agrícola. Mas esse incremento desenvolvimentista vem
preocupando a todos quantos não participem desse processo predatório da
natureza. Essa preocupação, todavia, não vem sendo traduzida em ações reativas concretas
capazes de estancar ou ao menos reduzir os impactos danosos da escalada
expansionista, alimentada por impulsos lucrativos insaciáveis. Reagir e resistir por diferentes formas e meios pode funcionar como contraponto
necessário. O espectro desolador que se
coloca em pauta reclama atitudes corajosas e eficazes. O medo e a passividade estimulam
a agressividade do aparato predatório.
Tenho
a lúcida compreensão de que o agronegócio
pode conviver, pacificamente, com a agricultura
familiar. Já o disse em outro texto nesta
coluna, e o reafirmo agora. Se assim não pensasse, não poderia compreender a
mensagem doutrinária esculpida desde o “Estatuto da Terra”, de 1964, fruto de estudos
profundos sobre o sistema terreal brasileiro, desde o descobrimento do Brasil,
em 1.500, cuja colonização se iniciou com Marftin
Afonso de Souza, em 1531. Tenho embasamento teórico não apenas do sistema terreal, mas também do sistema produtivo na área rural. Não sem
razão, o Estatuto da Terra privilegia a “empresa agrária” e a “agricultura
familiar”, ao mesmo tempo em que repudia o latifúndio
e o minifúndio. Ambos não convêm
ao desenvolvimento socioeconômico brasileiro. O
que se condena é a supremacia da empresa
agrária sobre a agricultura familiar,
com o discurso corrosivo de produtividade “acima de tudo e de
todos”, com o emprego de modernas tecnologias, em detrimento da proteção socioambiental
e cultural das pequenas comunidades, que não tiveram oportunidade de absorverem
essas tecnologias.
Essa mentalidade produtivista isolada exclui os demais elementos configuradores da função social da terra, exigida para
todas as propriedades – grandes, médias e pequenas. É preciso que
todos compreendamos que a função social
não se resume apenas à produtividade,
pois também reclama a proteção ambiental e
a condição social de quem vive e
trabalha na terra.
A
partir dessas premissas, o desmatamento de cerca de dois mil hectares no
interior do Município de Buriti (MA) – apenas para ficar nesse exemplo -, oferece
nuances jurídicas que poderão ser trabalhadas na esfera judicial, a depender da
conscientização e da coragem de quem queira e possa fazer alguma coisa, mesmo
que não seja para recuperar o perdido, mas para evitar tragédias vindouras. No
caso, se há notícias de que aquela área estava com a documentação duvidosa e sob
análise na SEMA, é preciso saber se houve licenciamento para o desmatamento
noticiado, e em que condições foi fornecido. Também é preciso saber se a área assustadoramente
devastada estava protegida por documentação hábil, chancelada pelos órgãos de
regularização fundiária e de controle ambiental, em conformidade com os ditames
legais emanados do Estado do Maranhão e/ou da União.
Essas
informações apresentam-se como fundamentais para a judicialização do caso. A
Iniciativa, nessa direção, pode ser o manejo de uma AÇÃO POPULAR, salutar mecanismo judicial que pode ser utilizado por qualquer cidadão – diga-se,
qualquer pessoa portadora do título de eleitor. É uma faculdade conferida no
corpo da própria Constituição Federal (artigo 5°, inciso LXXIII), cujo teor não
deixa dúvidas: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a
anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado
participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má fé, isento de custas
judiciais e do ônus da sucumbência” (honorários de advogado).
É
evidente que a ação judicial que proponho não se
prestará para recuperar a flora já devastada. Mas servirá para anular
o licenciamento expedido, eventualmente irregular – como foi
noticiado no programa radiofônico -, abrindo espaço para a responsabilização do Estado
– e, por via regressiva, dos agentes públicos que tenham praticado o ato licenciador,
acaso maculado por vícios legais.
Para
instrumentalizar a ação que ouso sugerir, não se me afiguram intransponíveis as
barreiras burocráticas, na medida em que a obtenção de documentos e informações
está facilitada no sistema jurídico-legal brasileiro. Com efeito, se é certo
que o processo judicial da Ação Popular
está disciplinado na Lei n°4.717, de 29.7.1965, - que permite a solicitação formal de documentos
e informações de órgãos públicos, visando a dar consistência ao processo -, também
é certo que a Lei n°12.527, de 18.11.2011 (“Lei de Acesso à Informação”)
igualmente viabiliza a obtenção dos elementos informativos necessários para o
exercício da ação cogitada. Não há, portanto, empecilhos para a captação da
documentação para o ajuizamento da ação sugerida. Eu mesmo o faria, se tivesse em mãos essa
documentação, já que o procedimento judicial exige a intermediação de advogado
(artigo 103 do Código de Processo Civil). Só não tenho condições de acompanhar
o andamento do feito, o que lamento, pois o faria gratuitamente.
Sabe-se
que não existe ganho de causa antes da decisão final da Justiça
institucionalizada. Mas, se os resultados dessa empreitada não forem
satisfatórios, não se dirá que não passou de uma quimera. Dir-se-á, ao
contrário, que foi marcada a posição dos indignados com a destruição da nossa
flora e fauna, potencializando a indesejada desertificação do nosso território,
outrora fértil sem agrotóxicos, e tudo agora a troco de ganhos financeiros efêmeros
para exploradores insaciáveis, iludindo incautos de que os impostos recolhidos
voltam em forma de benefícios à população. Tenho fundadas dúvidas!
Não
me dispenso, por isso, de fazer a destemida exortação
a quantos comunguem com minhas ideias:
AGIR É PRECISO. RESISTIR É UM DIREITO-DEVER
DO CIDADÃO!
OBSERVAÇÕES:
1. Ao finalizar essa
narrativa, fui informado de que o IBAMA suspendera as operações de
desmatamento. Menos mal.
2. As indicações de
leis neste texto destinam-se à conferência dos interessados afeitos à área jurídica.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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