*Por Benedito Ferreira
Marques
ENTRE A LEI E A CONSCIÊNCIA JURÍDICA
Cabelos em desalinho, acabrunhado, com
fisionomia carregada, calado, andando em passos lentos, um juiz adentra a sua
casa, voltando do fórum. Sua esposa percebe que algo está errado. Busca
ampará-lo e o ajuda a assentar-se num confortável sofá. Em atitude não
costumeira, descalça-lhe os sapatos e as meias, sempre indagando o que acontecera.
O marido/juiz mantém o silêncio incômodo e preocupante. A esposa oferece-lhe um
drinque, ele não responde, mas ela providencia o trago. Insiste em
perguntar-lhe o que houve em seu trabalho, para ele estar daquele jeito. O
silêncio é sepulcral. Cabisbaixo, não encara a sua companheira de muitos anos. De
vez em quando, levanta a cabeça e olha no horizonte, como se procurasse uma
resposta para a sua aflição. Continua mudo e, talvez propositalmente, surdo às
indagações pertinentes da sua amável mulher.
Meu Deus! O que houve? Ele nunca esteve assim! O magistrado não
demonstra sentir qualquer dor física, nem ostenta sinais de pressão arterial
desarticulada. A prudente companheira resolve chamar um médico. Ao dirigir-se ao
telefone em passos decididos, ele, enfim, decide falar, repelindo a providência
do socorro médico. E explica: “Sabe,
querida, estou assim porque acabei de proferir uma sentença, rigorosamente
dentro da lei, mas em desacordo com a minha consciência jurídica”. Fica
claro que o juiz não fez justiça.
Esse
enredo me anima a comentar, em linguagem menos jurídica possível, o que muitos
leigos me indagam em encontros fortuitos: a
lei é o direito? Sempre respondi aos meus alunos, quando me faziam tais
perguntas, que a lei não é, em si mesma, o direito, senão apenas o retrato de
um direito pertencente a determinada pessoa ou a um segmento social, em algum espaço
e por determinado tempo, a depender das circunstâncias. Nessa linha, dessume-se
que as circunstâncias são fatores determinantes na elaboração de uma lei,
qualquer que seja a natureza do direito que ela pretenda refletir. Podem ser
modificadas ou revogadas a qualquer tempo, desde que respeite o ato jurídico, o direito adquirido e a coisa
julgada. A lei é chamada de regra,
que, juntamente com os princípios, constituem normas. A norma
é, assim, o gênero de que são espécies os princípios
e as regras. Não raro, há
princípios inseridos dentro de uma lei, como soe acontecer em nossa Constituição
Federal, em diversas disposições.
A
partir dessas noções teóricas, é possível enxergar o conflito que as leis podem
provocar na consciência do seu aplicador (juiz, advogado, promotor ou qualquer
operador da lei). Tudo vai depender da interpretação
do texto legal, cuja técnica é chamada de hermenêutica. Essa técnica é tão
exigente, que pode suscitar variadas percepções do texto escrito (lei), seja a
Constituição, sejam as leis hierarquicamente inferiores. Ao hermeneuta cabe o difícil mister de auscultar
a intenção do legislador. Cumpre-lhe buscar o sentido da lei, e é na
interpretação da lei que o operador do direito pode se encontrar ou se perder. Pode
entender que a regra confere ou nega o direito, direcionando a sua
interpretação para a tese que pretende sustentar em determinada situação ou
processo.
Pode-se
concluir, portanto, que o acontecido com o juiz, no enredo desta narrativa, foi
um engano na interpretação da lei, que produziu um conflito em sua consciência
jurídica. É dizer, o homem é falível.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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