Avaliação prévia da
sugestão do Presidente do STF sobre a paralisação dos prazos de prescrição
penal.
A PRESCRIÇÃO PENAL E A MOROSIDADE DA JUSTIÇA
*Por Benedito Ferreira Marques
O mundo jurídico e, por tabela, a
classe política nacional foram surpreendidos com um inusitado ofício do
Ministro Dias Toffoli, Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
encaminhado no dia 28.10.2019, ao Congresso Nacional, sugerindo uma modificação
do Código Penal, quanto ao tratamento dos prazos para a prescrição de crimes.
Observa-se que a novidade surge justamente no momento em que a Suprema Corte
está julgando três ações (chamadas, simplificadamente, ADCs – Ações Diretas de
Constitucionalidade), nas quais os autores questionam o cumprimento provisório da pena de prisão na segunda
instância, tema por demais comentado até em bares de ponta de rua. O que as
partes autoras (entre as quais, a OAB) sustentam é a constitucionalidade do
artigo 283 do Código Penal, compatibilizando-o com o inciso 57 (LVII) do art. 5°
da Constituição Federal. Esses preceitos cuidam, a um só tempo, da presunção da inocência até o trânsito em
julgado da decisão condenatória. Vale dizer, o réu condenado não poderá
iniciar o cumprimento da pena de prisão, enquanto não se esgotarem todas as
vias recursais.
O
que os juristas e políticos estão estranhando
é o momento em que tal sugestão vem
à tona, ou seja, quando o julgamento das ADCs está pautado para ser reiniciado
no próximo dia 7.11.2019, cujo resultado ainda não se sabe. As especulações são
de que o escore será apertado, seja para manter o entendimento de cumprimento
provisório da pena de prisão em segunda instância, seja para esperar o trânsito
em julgado de todos os recursos legais. Pondera-se
que, além de a matéria ser controvertida, os votos dos magistrados superiores
costumam ser longos, o que significa dizer que o julgamento poderá estender
para frente, ou seja, além do dia 7 de novembro.
A
despeito da clareza das regras postas em discussão – sobre as quais já produzi
um texto nesta coluna -, há muitas variáveis que alimentam o debate.
Ser ou não ser “cláusula pétrea” a presunção da inocência; qual a posição da
legislação de outros países sobre o tema; o que representa a prisão provisória
para o combate à corrupção e à impunidade; se a inovação pretendida no ofício
enviado ao Congresso Nacional caracterizará quebra do princípio da isonomia
entre réus ricos e pobres, no acesso a advogados mais perspicazes e, por isso,
mais bem remunerados; como se coloca na discussão do tema a superlotação dos
presídios, se há ou não necessidade de ser dada satisfação aos anseios da
sociedade, e tantas outras facetas.
No
intermeio dessas reflexões pontuais, ressaem questões relevantes que estão
escapando de ponderações por parte dos que se entregam ao buliçoso tema. Penso
que a sensatez reclama juízos prudentes para certas nuances tangenciadas. A
primeira – que, para mim, se sobrepõe a todos os discursos -, é a evidência de
que a Constituição Federal de 1988 foi escrita e aprovada por uma Assembleia Nacional
Constituinte. Se há insurgência contra a presunção de inocência, que foi
classificada como “clausula pétrea”, no voto do Ministro Lewandowski, baseado
no inciso IV do §4°do artigo 60 da Carta Magna, a iniciativa de projetos que
pretendem excluir o inciso 57 (LVII) do art. 5° da “Lei Maior” perde-se no vazio do despropósito,
ainda que esses desideratos partam do Poder Legislativo federal. A meu pensar,
somente outra Assembleia Nacional Constituinte poderá promover a alteração
pretendida. Para mim, os direitos fundamentais enumerados no artigo quinto da
“Constituição-Cidadã” são intocáveis – ou, no dizer de Rogério Magri (Governo
Collor) “são imexíveis”!!!
O
segundo ponto que merece reflexões é a narrativa vocalizada no Parlamento
brasileiro, segundo a qual a iniciativa oriunda do Ministro-Presidente do Poder
Judiciário já pode ser considerada acolhida, a partir da receptividade dos
Presidentes do Senado e da Câmara Federal. Vozes discordantes dessa “ideia” classificam-na
como um flagrante casuísmo, na medida em que a implementação da mudança
sugerida beneficiaria réus de grande expressão política, chegando alguns a
insinuar que a sugestão noticiada revelaria o objetivo de “justificar” a
iminente mudança da jurisprudência daquela Corte, com relação à prisão
provisória que está cumprindo o ex-Presidente Lula e outros, não mais que uma
dúzia, segundo a imprensa. Pensar desse modo, a meu juízo, é desconhecer que subsiste
o dogma de que “leis penais não retroagem para prejudicar”. O engessamento da
prescrição de crimes, a partir dos recursos em curso nos tribunais superiores (STJ e STF) poderá
colocar-se como instrumento eficaz ao combate à impunidade, ao desestimular a
interposição sistemática de recursos, apesar de estarem ensejando a execução
provisória da pena, como a de Lula. Mas não se pode tangenciar a provável
invocação do princípio da irretroatividade das leis penais por réus que
interpuseram recursos, prejudicando milhares de réus que não recorreram de suas
sentenças condenatórias e continuariam cumprindo penas definitivas, não lhes
importando se seus crimes prescreveram ou não.
Noutra
vertente, a proposta do Ministro Toffoli não contempla um secular problema que
afeta a Justiça, em todos os níveis do Poder Judiciário: a morosidade que impera na máquina judiciária brasileira. Atribuir-se
como causas determinantes dessa lentidão a insuficiência de pessoal e de
estrutura material, e ao aumento vertiginoso de processos que se instauram, dia
a dia, mercê da conscientização da cidadania, - com todo respeito, para dizer “data
venia” -, é um discurso que não se sustenta, porque a distribuição da Justiça é
um direito fundamental do cidadão e um dever do Estado. Isso é fato.
Não
se pode, portanto, debitar na conta da prescrição a morosidade reinante, como
também não se pode debitar a morosidade sistêmica dos processos na conta da
categoria profissional dos advogados, por causa da cadeia sucessiva de recursos
interpostos. Se recursos há na sistemática processual, o advogado recorre. E
não se pode abstrair a regra constitucional estampada no artigo 133 da “Lei
Maior” de que o advogado é indispensável
à promoção da justiça. Distinguir advogados mais e menos hábeis, mais e
menos caros nas contratações de honorários advocatícios é transferir a
responsabilidade da morosidade dos processos a quem a Constituição Federal atribui
a indispensabilidade de sua atuação na distribuição da justiça. Isso constitui
grosseira erronia. Não é esse o caminho para banir os males que emperram o
funcionamento da máquina judiciária.
Com
esses comentários limitados a poucos tópicos, ouso concluir que a ideia de frear
os prazos da prescrição para a persecução penal, em casos de recursos para os
Tribunais Superiores, pode até embutir matiz casuístico – como querem certos segmentos
políticos -, mas não consigo enxergar a relação entre a sugestão oficiada com o
julgamento das ações diretas de constitucionalidade (ADCs) em pauta. Também não
consigo aceitar, sem insurgência, a tese de que a presunção de inocência
aplicada a réus processados criminalmente esteja dissociada dos princípios da ampla
defesa e do contraditório, e muito menos desatrelada do preceito consagrador da
dignidade da pessoa humana. Não se pode
esquecer de que a prisão tolhe um direito do cidadão de difícil reparação: a
LIBERDADE.
Ainda
à guisa de conclusão, não encontro razões plausíveis no discurso que considera
a pena privativa da liberdade como principal instrumento de combate à
corrupção, ainda mais nos crimes de natureza econômica. Para mim, há fortes
sinais de paranoia nessa volúpia punitiva, que se confunde com desejos
inconfessados de vindita ou sadismo disfarçado, não raro, alicerçados no
fanatismo político-ideológico, que, à sua vez, se alimenta do ódio doentio, que
não se compadece com a tolerância e transigência que devem presidir as ações
humanas.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
Tags:
Coluna do Benedito