Por Benedito
Ferreira Marques
“Nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira (art. 1°)
O
conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
Os
conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados
no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística e de Literatura e História Brasileiras.
O
calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da
Consciência Negra”.
O que
está transcrito na epígrafe do texto que irei desenvolver em frente é o que
compõe a essência da Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003, sancionada pelo
então Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, exatos nove dias depois de sua posse para o primeiro mandato
presidencial, o que revelou não apenas o seu apreço, mas também a sua
preocupação com a raça negra em nosso
País. O texto legal que serve de mote a este trabalho introduziu os artigos
26-A e 79-B, na “Lei de Diretrizes e Bases da Educação” (LDB). Interessa,
portanto, a estudantes, professores e à sociedade em geral.
Indago: essa lei
está sendo cumprida fielmente, já que todos os verbos empregados nos
dispositivos se qualificam, na técnica jurídica, como regras imperativas?
Ainda que a auspiciosa lei não esteja sendo
obedecida, considero oportuna uma abordagem sobre o “Dia Nacional da
Consciência Negra”, ocorrido na semana passada. Trata-se de uma temática que
transcende os currículos escolares nos níveis fundamental e médio de
estabelecimentos públicos e privados. As discussões que ainda se travam sobre a
contribuição que os africanos trouxeram ao Brasil, tanto pelo trabalho escravo,
como também pela cultura, costumes, tradições e religiosidade, tudo faz parte
de um processo histórico que não se esgota. A instituição de um dia por ano
para reflexões e conscientização do papel desempenhado pelos negros africanos é
muito pouco, para a dimensão que o tema propicia. Afinal, remanescem os
afrodescendentes que ainda mantêm vivo o legado dos seus ancestrais.
Na
suposição de que muitos desconhecem que o dia
20 de novembro é dedicado à “consciência negra”, ocorre-me fazer uma incursão
nesse assunto, ainda que perfunctória, com o propósito de contribuir para o
despertar de quantos venham acessar este texto.
Começo por expressar o meu orgulho sadio de me
considerar afrodescendente. Retiro
essa conclusão não pela minha cútis, mas por um registro passageiro no livro
que meu pai escreveu e lançou, por ocasião da celebração dos seus 80 anos, em
1995. Deixou dito, ali: “Meu avô era
negro, mas não era escravo”. Não faço ideia do ano em que nasceu meu avô Raimundo Nonato de Sousa, muito menos do
meu bisavô Vicente Caetano de Sousa.
Sei, porém, que meu pai nasceu no dia 31.01.1915. Considerando que a abolição
do regime escravocrata, no Brasil se dera no dia 13.05.1888, este fato
histórico distava menos de 27 anos do nascimento do meu saudoso pai. Isso
significa que meu avô nasceu no alvorecer da abolição do regime escravocrata, e
que o seu pai nascera antes do evento histórico. Todos de cor negra, mas, nem
por isso, foram escravos. Meu pai tinha razão. Considero-me, portanto,
afrodescendente.
Com esse orgulho que
chamei sadio, sinto-me à vontade para
incursionar nesse terreno ainda suscetível de preconceitos inadmissíveis. O
próprio adjetivo “sadio” já encerra, em si mesmo, uma nuance com matiz
preconceituosa, porque o substantivo “orgulho” também é visto em sentido
pejorativo, já que, quase sempre, o orgulhoso é considerado presunçoso. Não
devia ser assim. Mas é.
Quando
se fez necessário instituir o “Dia Nacional da Consciência Negra” no bojo de
uma lei, resulta demonstrado que o preconceito racial ainda perdura, e não se
sabe até quando irá, passados 131 anos da cognominada “Lei Áurea” que, em
apenas um artigo, tentou abolir a escravidão no Brasil. Foi como aconteceu com
a edição do “Estatuto da Terra”, em 30.11.1964, editada pelo Governo Militar
que se instalara em 31 de março daquele ano, com o propósito de banir a “subversão”
e promover o “desenvolvimento”. Segmentos progressistas daquela época clamavam
por uma reforma agrária, que era uma das bandeiras dos considerados “subversivos”.
O Governo tido como fruto de uma “revolução” ofertou o Estatuto, como se
dissesse: “Vocês querem reforma agrária,
então está aí o seu instrumento”. Faltou dizer: “mas tudo dependerá de nós, da vontade governamental”.
Assim também foi a
abolição da escravidão. A Princesa Isabel
assinou, com pompas e galas, sob o testemunho dos defensores ardorosos, como Joaquim Nabuco, a apelidada “Lei Áurea”,
com apenas dois artigos. No primeiro, decretou: “Está abolida a escravidão no Brasil”, e, no segundo: “Revogam-se as disposições em contrário”.
Indago eu: quais disposições? Não havia lei instituindo a escravidão. Esta se
impôs por vontade da classe dominante, que precisava de mão de obra gratuita.
Os escravos chegavam aos montes em navios e eram despejados nos portos
brasileiros como “animais de carga”, e escolhidos como burros e cavalos, na
inspeção dos seus dentes e pela compleição física. Os engenhos de fabricação de
açúcar, as fazendas de gado e lavouras diversas, os serviços domésticos, tudo
dependia dos negros traficados.
Deram aos escravos a
liberdade formal, mas não lhes deram
os instrumentos para o trabalho livre e
remunerado para a sua subsistência. O resultado desse “golpe político” é
que a escravidão continua existindo ao longo desses anos todos, a caminho de
dois séculos, e o preconceito existe e resiste, a despeito dos arranjos
institucionais, como, por exemplo, o acesso às universidades públicas pelo
sistema de cotas. E ainda há quem repugne essa política de inclusão social! O
problema é cultural e estrutural. Não se resolve apenas com a edição de leis,
cuja execução depende de políticas públicas e ações afirmativas. Exemplo dessa
assertiva são as leis que definem e preveem punição para os crimes de RACISMO (Lei n°7.716/89) e a INJÚRIA RACIAL, no
Código Penal brasileiro. Apesar do rigor das penas previstas nessa legislação,
subsiste a prática desses crimes, e os exemplos estão aí, divulgados todos os
dias, como ocorreu, recentemente, com jogadores de futebol. Bem fez o jogador Daniel Alves (hoje jogando pelo
“tricolor paulista” (São Paulo) que, certa feita, lhe atiraram uma banana em
pleno jogo, e ele a recolheu e comeu, sob aplausos da maioria não racista.
Assim como ainda se
espera a “reforma agrária”, que depende de vontade política do governo, ao qual
compete a indenização de latifúndios improdutivos, o respeito aos negros e
pardos depende de conscientização. Não sem propósito, foi instituído o “Dia
Nacional da Consciência Negra”, que não devia emergir do bojo de uma lei, mas
da própria compreensão da sociedade, a partir da noção da cidadania, que não
existe em função da cor da pele. Não é a pele que dá identidade e cidadania às
pessoas, sejam ricas ou sejam pobres. Jogadores de futebol e atores e atrizes
de televisão e teatro ainda enfrentam o racismo, como se este fosse o sinal
distintivo de classes sociais. Há brancos ricos, mas há brancos pobres também,
e em quantidade considerável, Brasil afora.
Noutra vertente, considero o culto a “Zumbi dos Palmares” justo, porque, com
ele e sua coragem, nasceram os quilombos. Mas me repugna a distinção que fazem
entre ele e outros tantos líderes negros, como o “Negro Cosme”, da “Guerra da
Balaiada”, no Maranhão, como se fossem exceções. Essa diferenciação alimenta o
preconceito, inclusive de autoridades governamentais, que tratam os
remanescentes de comunidades quilombolas com desdém, como párias da Pátria.
Quando, nesta coluna, me posicionei contra os gáudios efusivos manifestados com
a chamada ‘Base de Alcântara’ (também no Maranhão), foi pensando nos destinos
das comunidades afrodescendentes ali existentes, em grande parte já expulsas,
proibidas até de visitarem os túmulos dos seus ancestrais. Sepultaram tradições
culturais de séculos, em nome de um progresso duvidoso, a troco de migalhas tecnológicas
invisíveis.
Concluo esta
narrativa, proclamando a esperança nos estudantes, na juventude de hoje,
naqueles que ainda cursam o fundamental
e o médio, pois foi para eles o
direcionamento da Lei n°10.639/2003. Com a mesma ênfase, exorto os professores
desses níveis escolares para que façam do mandamento legal uma bandeira
permanente, e não se lembrem desse tema apenas no “Dia Nacional da
Consciência Negra”.
Abaixo o preconceito racial!
Abaixo o racismo!
Abaixo a injúria racial!
Viva Zumbi dos Palmares!
Viva o Negro Cosme!
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros
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