Considerações
jurídicas sobre a resistência de um preso não aceitar o regime semiaberto.
A COERÊNCIA DE LULA E O DIREITO DE FICAR PRESO
*Por Benedito
Ferreira Marques
A condição de professor de Direito, ainda que já
aposentado, me enseja reencontros fortuitos com ex-alunos ou receber telefonemas
eventuais. Não raro, os cumprimentos cordiais e amáveis se fazem acompanhados
de indagações sobre dúvidas ainda existentes em temas variados no campo jurídico.
Talvez isso se deva à minha postura despojada e aberta para dialogar e opinar
sobre temas complexos. Ao longo de mais de três décadas no exercício do magistério
superior, sempre me comportei assim. E isso me fazia e ainda me faz bem. Não sovinava
nem sovino informações e opiniões, por entender que o Direito é uma ciência que
se alimenta da dialética.
Agora
mesmo, estou sendo instigado a dar meu palpite sobre o chamado “Caso Lula”,
ainda que a área penal não seja minha praia. Alguns desses ex-alunos querem
ouvir o que penso sobre o direito de o ex-Presidente Lula não aceitar a sua progressão
do regime fechado para o regime semiaberto, ainda no cumprimento da
pena que lhe foi imposta na primeira condenação entre os processos por que
responde: o famoso caso do tríplex do
Guarujá, em São Paulo, do qual não tem o título de propriedade nem a posse. A
sentença condenatória concluiu que o condenado não é dono nem possuidor, mas
“era para ser”, ou seja, uma ilação!
Ao leigo, pode parecer estranho que o pedido
dessa benesse (mudança do regime fechado para o regime semiaberto) tenha sido
formulado por Procuradores da chamada “Lava Jato”, entre os quais o próprio
chefe da “força tarefa”. O condenado e
preso não pediu tal benefício, nem autorizou a seus advogados a fazê-lo,
mantendo a coerência de que se considera inocente. Louve-se essa coerência, que
muitos dos seus algozes não têm. Aliás, eu diria coerência, coragem e resilição. Encarcerado desde o dia
7.4.2018 (um ano e meio, até aqui), vem repetindo essa sua determinação em
várias entrevistas concedidas - autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal
(STF), diga-se, a bem da verdade -, de que poderá passar 100 anos, mas só sai á
da cadeia com o reconhecimento oficial de sua inocência nos crimes que lhe
foram imputados. Diz e repete, sempre: “Não troco minha dignidade pela minha liberdade”.
Para
mim, particularmente, essa posição não pode ser considerada demagógica, mas, ao
contrário, revela uma convicção digna do maior líder popular da história republicana
brasileira no século 21. Sem nenhum favor, claro! Mas respeito quem pensa no sentido contrário, sabendo
que são muitos; milhões até, que o querem ver “apodrecer n o xilindró”. Raivas
e ódios não têm limites!
Essa
minha declaração pública, porém, não exercerá influência na opinião que me
atrevo a dar, neste espaço que me foi franqueado, abordando a temática já
anunciada no preâmbulo deste texto.
Quanto
à tomada de iniciativa pelo Ministério Público não me causa espanto, porque há
previsão legal (Lei n° 7.210, de 11.07.1984., em seu artigo 68, inciso I, alínea
“e”. A questão que se coloca é saber se
a decisão da juíza responsável pela execução da pena, em Curitiba, “deferir” o
requerimento (ou recomendação) feito pelo Ministério Público e o preso se
recusar a aceitar o que a mesma lei lhe franqueia. O preso
será obrigado ou não? As opiniões se
dividem, até mesmo entre os penalistas.
Realmente,
o caso é inusitado. É difícil supor que um preso não queira sair do cárcere,
depois de um ano e meio, numa cela de 15 m2, ainda que com algum conforto e com
liberdade para conceder entrevistas e receber visitas. Afinal, trata-se de um
cidadão que foi Presidente da República por dois mandatos seguidos, além do
que, como ex-Chefe de Estado, devem ser preservados “segredos de Estado”. Só
não compreende isso quem não quer; e há muitos! Se não é usual tal
comportamento, impõe-se uma leitura do que diz a lei. Essa é uma situação em que se colocam, frente
a frente, o direito e a lei, que não a mesma coisa. Sempre
entendi que “a lei é o retrato do direito em determinado lugar, tempo e
circunstâncias”. Não sem razão, a
Constituição Federal – que é lei em sua essência; aliás é apelidada de “Lei das
Leis” -, contempla uma regra considerada pétrea (“imexível”, para lembrar um
ex-Ministro do então Governo Collor de Melo.
Essa regra está posta no inciso quatro do artigo quinto da Carta Magna,
que será transcrita em frente.
Pois
bem. Não consegui enxergar na “Lei de
Execuções Penais” – LEP (Lei n° 7.210, de 11.07.1984), nenhum preceito obrigando o preso a aceitar o regime semiaberto,
ao preencher as condições previstas na mesma lei. O que consegui ler foi o Parágrafo primeiro
(§1°) do artigo 112, que determina a intimação do “defensor” do preso para se
manifestar, bem como o Ministério Público. Para manifestar-se sobre o quê, se
essa manifestação deve ser feita antes da decisão, segundo o teor do aludido
preceito? (art. 112, §1°, da LEP). Claro
que o Ministério Público ratificará o pedido. Mas, se o defensor do preso
manifestar-se contra, o que acontecerá ao preso? Será “levado na marra” e sob
todas as condições impostas pelo Juízo da execução? Haverá uma segunda “condução
coercitiva”, como já acontecera antes, apenas para prestar um depoimento, sem
que tenha sido intimado para tanto?
Vale
lembrar, aqui e agora, o conhecido brocardo jurídico de que “a
lei não contém palavras inúteis”
O
mais grave na interpretação dessa lei será a imposição de certas condições para
o preso usufruir do novo regime, como, por exemplo, o uso de “tornozeleiras
eletrônicas”, para quem já disse que “não é pombo”. E é exatamente contra esses
condicionamentos que o ex-Presidente se rebela. Para ele – além de significar uma
confissão tácita de aceitação de sua
culpa, contra a qual continua recorrendo em todas as instâncias -, representará
uma humilhação. Não se argumente que
outros presos em regime semiaberto estão usando “numa boa” tais instrumentos de
monitoramento. Eles aceitaram o regime,
o Lula, não quer aceitar. São situações diferentes - convenhamos.
É
nesse contexto que entra um instituto jurídico chamado “potestativo”, como
adjetivação de um “direito”: direito
potestativo. Significa que o exercício do direito depende da vontade
do titular desse direito. A progressão para regime semiaberto, então, seria um
“direito potestativo” ou um dever jurídico a ser cumprido
pelo preso, em tese, beneficiário do novo regime?
Juristas
da área penal de renomada reputação vêm se manifestando no sentido de que o
preso é obrigado a cumprir a decisão do Juízo da execução, bem como submeter-se
as condições impostas.
Não
vejo assim. Acho que a matéria comporta contemperamentos. E justifico minha
opinião num elementar preceito que se situa entre os direitos fundamentais da
pessoa humana. Está no artigo 5°, inciso IV da Constituição Federal, segundo o
qual “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de
lei”. Para mim, a “Lei de Execuções Penais” não contém regra
obrigatória para o preso sair de um regime fechado para o regime semiaberto,
sob determinadas condições, se não pediu tal benefício. Pensar diferente, seria
admitir um “direito/dever”, incompatíveis entre si
Apego-me
à lógica jurídica, para realçar que a
progressão do regime fechado para o semiaberto é uma espécie de premiação pelo “bom comportamento” do
preso. Essa ideia de bônus passa a ser um direito. Se é um direito, o seu
exercício depende da vontade do beneficiário desse bônus. Daí parecer-me que se
trata de um direito potestativo, isto é, depende da vontade do encarcerado,
e não do Estado-juiz ou do Ministério Público. Entendo que a legitimidade deste
Órgão de postular a mudança de regime do preso, para melhor, não significa que
o preso é obrigado a aceitar.
Discute-se
a hipótese de recusa, como uma insubordinação ao Juízo executor da pena e, por
esse comportamento, seria cassado o direito à progressão. A mim me parece um exagero dos que defendem
esse entendimento, porque seria ampliar a pena já em cumprimento, e a sentença
que ensejou tal prisão não previu aumento de sanção para caso que tal. Isso
também não li na LEP. A Lei não prevê pena para o preso que não quiser mudar de
regime para melhor. Se assim não fosse, o Ministério Público - autor da
iniciativa de pedir a progressão -, não pediria, como acaba de fazê-lo - talvez casuisticamente -, a
dispensa do pagamento dos danos, a que foi condenado o ex-Presidente, como
pena acessória. A mídia noticiou que
é a primeira vez que o Ministério Público flexibiliza essa pena acessória,
citando, inclusive, o caso Renato Duque
que, embora tenha tido o direito a um regime melhor de sua prisão, não pôde
receber o benefício, porque não teve condições de pagar a pena acessória. Foi o que noticiou a imprensa.
Vejo
que os operadores do direito estão diante
de um caso sui generis, que merece aprofundamentos. Tem sido essa a resposta
que venho dando aos meus interlocutores. Afinal, o que está em jogo é a liberdade
de uma pessoa, não porque foi Presidente da República, mas porque proclama
a sua inocência e continua lutando para que esta seja reconhecida. E
essa luta – que é pública e notória -; deita raízes profundas na dignidade
da pessoa humana, que é um dos mais importantes fundamentos da
República Federativa do Brasil, alicerçado na “Declaração Universal dos
Direitos Humanos”. Isso também deve ser levado em conta.
Melhor
mesmo será o Supremo Tribunal Federal (STF), onde dormitam processos
instaurados por força de recursos que versam matérias relacionadas com a famosa
“Operação Lava Jato”, pautar o julgamento desses processos, inclusive aquele
que trata da prisão do condenado, uma vez confirmada a sentença condenatória em
segunda instância, que, para mim, é uma afronta ao “princípio da presunção de
inocência”, conforme texto já publicado nesta coluna.
Que
a Suprema Corte decida a JATO.
Enquanto
isso não acontece, louvo a coerência do ex—residente Lula e considero salutar
que continue se valendo de todos os recursos disponíveis, em nome e por conta
dos princípios do devido processo legal,
da ampla defesa e do contraditório. Não desista, Lula. Não dê
ouvidos a quem, sem entender os meandros processuais, acha que o sistema
brasileiro propicia muitas vias recursais. Um dia você sairá da prisão e se encontrará
com o seu “povão” que, heroicamente, resiste em vigília impressionante, e lhe
dirá, com a sua voz rouquenha, que valeu a pena lutar por uma causa justa,
respeitando as regras da democracia. Um dia você cuspirá no rostos dos seus
algozes fanáticos o gosto do zinabre do cadeado atroz, que lhe tolheu os passos
e lhe privou a voz, livre de amarras institucionais, quiçá articuladas em
esquemas de surdinas noturnas para que você não voltasse à Presidência, porque
a sua política de inclusão social incomodou a muitos e agradou a milhões, hoje
relegados ao infortúnio e a incertezas do porvir. Esse é o cenário que se apresenta; essa é a
angústia que impacienta.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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