LÍNGUA DE FOGO
Carcará
Lá
no sertão
É
um bicho que avoa que nem avião
É
um pássaro malvado
Tem
o bico volteado que nem gavião
Carcará
Quando
vê roça queimada
Sai
voando, cantando,
Carcará
Vai
fazer sua caçada
Carcará
como até cobra queimada
Mas
quando chega o tempo da invernada
No
sertão não tem mais roça queimada
Carcará
mesmo assim nem passa fome
Os
burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega,
mata e come
Carcará
Num
vai morrer de fome
Carcará
Mais
coragem do que homem
Carcará
Pega,
mata e come
Carcará
é malvado, é valentão
É
a águia de lá do meu sertão
Os
burrego novinho nem pode andá
Ele
puxa o umbigo inté matá
Carcará
Pega,
mata e come.
(João
do Vale, maranhense, de Pedreiras)
A crise
ambiental brasileira deste ano, refletida em desmatamentos e queimadas de
florestas na região amazônica e em outras regiões, não pode ser considerada, a priori, culpa exclusiva do governo
atual, até porque mal começou, e começou mal. Não se lhe pode, todavia,
atribuir a responsabilidade exclusiva dos crimes ambientais perpetrados, do que
estão saboreando países europeus, a pretexto de ameaças à humanidade. Não, a
culpa não é exclusiva, embora o próprio Vice-Presidente da República tenha
admitido, de viva voz, que o Governo cometeu erros.
Queimadas
ocorrem há séculos, chegando mesmo a ser considerado um problema cultural no
Brasil. Pequenos roçados de agricultores
familiares e cultivos agrícolas indígenas sempre as consideram necessárias. O
que se questiona, nas queimadas deste ano é a proporção que tomou, varrendo
áreas extensas da região Norte, motivadas por desmatamentos desautorizados. O
que se questiona é o modelo de governança que, em menos de um ano, já
ressuscitou os “panelaços” em prédios de algumas cidades brasileiras, ocupados
pela classe média (arrependida ou não de escolhas feitas), induzida pela
repercussão negativa em nível nacional e internacional das queimadas,
antecedidas de desmatamento desenfreado – e presidencialmente estimulado -, em
nosso País, à míngua de fiscalização eficiente, no tempo e no espaço.
Fragilizaram o IBAMA e afrouxaram a fiscalização; desmentiram o dados
informativos oficiais divulgados pelo INPE, classificando-os como falsos;
desprezaram o CMbio; desmoralizaram a FUNAI; desmontaram o INCRA. E mais que
isso: disseminaram o uso indiscriminado de armas de fogo e incentivaram
grileiros, madeireiros e garimpeiros sem títulos de propriedade formais,
montados em cima do “Deus-dará-da-emoção”, incentivados por discursos belicosos
e raivosos, como se a Amazônia fosse inesgotável. Admitiram ações criminosas,
mas se esquivaram de reprimi-los, deixando a cargo de Estados com cofres vazios,
lavando as mãos, ao modo de Pilatos. Foi um “toma que o filho é teu”. Tiraram o
corpo, como se o problema não fosse também seu. Mas a mobilização de
governadores o trouxe de volta à realidade. Foi o que se viu, ao vivo e em cores.
Há muita
especulação e muita desinformação e, no meio delas, aguçadas paixões
político-ideológicas. Nunca se discutiu tanto a problemática ambiental, graças
à rapidez das notícias midiáticas, em grande parte classificadas como fake news, transmitidas ao sabor das
posições de cada um. Ouvem-se cientistas, climatologistas e especialistas no
assunto, mas as suas explicações confundem a opinião pública, porque se contradizem. Não foi sem propósito que, nesta Coluna,
sugeri a inclusão da Educação Ambiental
nos conteúdos escolares de todos os níveis de ensino – do fundamental ao
superior -, por compreender que o tema envolve conhecimentos específicos sobre
os mais diferentes aspectos, que reclamam explicitações das causas e efeitos
econômicos, políticos e sociais. A educação ambiental ajudaria a compreender a
problemática e a buscar soluções concretas, já que o Estado e a Sociedade são responsáveis pelo “meio ambiente ecologicamente protegido, para
as presentes e futuras gerações”, na dicção imperativa do Estatuto Maior
brasileiro. A conscientização ambiental é o caminho. Paixões e
intransigências - não raro, pela
desinformação e pela falta de reflexões sem paixões -, devem ser compreendidas,
e não, repelidas. Pensar é preciso, sem
prejuízo do sentir. Racionalidade e emoções podem se juntar na busca de
soluções pragmáticas, em momentos de aflições. O que não pode é uma se sobrepor
à outra.
Nesse
contexto, o que é inconcebível e o que é inaceitável é conduzir uma questão tão
séria, como a ambiental, com bravatas e autoritarismos, que se agravam com retóricas
e posturas de soberba na recusa de recursos externos que, bem ou mal, vinham
ajudando a solucionar problemas pontuais. O que é inconcebível e inaceitável é
o confronto interno que se expande além-fronteiras, com nuances de pragmatismos
ideológicos irredutíveis, marcados por maniqueísmos insustentáveis numa
sociedade plural. A sociedade conscientizada não tolera expressões populistas e
inconsequentes, como “quem manda sou eu”, “os dados divulgados pelo INPE são
falsos”; “eu demito com minha caneta Bic”; “quero beneficiar meu filho, sim”;
“quem é essa OAB?” e tantas outras asneiras. O conhecido filósofo Luiz Felipe Pondé, em comentário na TV
Cultura, dias atrás, chegou à sensata conclusão de que o “Senhor Presidente” está
passando para o público a impressão de que ainda não acreditou que foi eleito e
que já foi empossado; continua em palanques, a atacar quem não comunga com suas
ideias e pensamentos. Daí as sucessivas trocas de componentes de sua equipe; daí
o esvaziamento gradativo de órgãos e o desprestígio de auxiliares graduados, em
nome e por conta de uma chamada “Nova Política”! Já se cogita, abertamente, da
saída do Ministro da Justiça e Segurança Pública, seja porque poderá ser
candidato concorrente em 2022, seja porque já não preenche o perfil de
“terrivelmente evangélico” para ser Ministro do STF. Está sendo fritado em fogo “morosamente” brando e não percebe – ou
finge não perceber -, quando desce rampas palacianas a título de afagos efêmeros.
No dia seguinte, exonera-se o Chefe da Polícia Federal do Rio de Janeiro
indicado pelo “Super-Ministro”. O que é
isso? O ex-deputado Airton Soares classifica como hipocrisia. Será?
Os
protestos e panelaços que ocorreram, há alguns dias, em cidades do Brasil e de
outros países, revelaram insatisfações e preocupações com a Amazônia. Isso é
fato. Mas também traduziram inconformismos precoces com o modelo de governança inaugurado
em 2019, que poderá gerar à insustentabilidade do Poder constituído nas urnas,
talvez com riscos para a Democracia reconquistada em 1984. Já se fala em instituir, debochadamente, o “Dia do Fogo”, criação chistosa
de fazendeiros que teriam planejado as fogueiras “juninas” em pleno mês de
agosto, sem os bois “Garantido” e “Caprichoso”, nas passarelas iluminadas de
Parintins (AM). Se a moda pegar, não será surpresa se tal festança folclórica
for estendida, por “birra” de Macron,
para os arraiais de São Luís (MA), fundada pelos franceses, em 1612, instituindo-se,
ali também, o “DIA DA LÍNGUA DE FOGO”, e
sem temer a reação do “Capitão Motosserra”, que não gosta de “Governador comunista”.
Seria mais um feriado entre tantos, a ensejar festejos na terra do
“Bumba-Meu-Boi”!
Para
evitar tais desarranjos, povoem-se os céus dos “Lençóis” com os carcarás
“valentões” do João do Vale, para
enxotarem os idealizadores privatizantes daquelas belezas naturais, sem “posse”
e ´portes” de armas de fogo. Tomara que isso não aconteça!
Ironias
à parte, o de que o Brasil precisa é a implementação de ações concretas e
urgentes e a definição de uma política ambiental séria e transparente, para
evitar desastres ecológicos, cuja recuperação exigirá
décadas
e a passagem de várias gerações. A hora não é de demonizar países europeus que
colonizaram o Brasil, nem é de louvaminhas a outros países preferidos, dos
quais, paradoxalmente, o governo aceita ajudas oferecidas, sem necessidade de
“desculpas” formais por desafores pessoais. Confrontos belicosos sempre
conduzem a desencontros inamistosos. A
História comprova isso. Se o Brasil está
dividido em opiniões díspares, deve-se à democracia,
que não se abaterá com desagregadoras “línguas de fogo” acendidas com fósforos autoritários.
Não há divisão entre irmãos pátrios. O
que há são divergências de opiniões que merecem respeito recíproco. A toda ação corresponde uma reação. É isso que faz o equilíbrio; e é isso que pluraliza
a sociedade e fortalece o regime democrático. É inconcebível que só um lado
queira estar certo e o outro, errado. Nunca estará.
Particularmente,
não alimento ilusões de mudanças comportamentais do primeiro mandatário da
nação brasileira. Nem me atrevo a proclamá-las, porque o perfil do personagem
central desse imbróglio revela instabilidade emocional incompatível para o equilíbrio
necessário ao deslinde da crise estimulada por desvios retóricos inoportunos.
É
por essa razão que me apraz lembrar os versos do conterrâneo João do Vale, na figura do seu valentão
CARCARÁ, aos quais agrego os meus, na singeleza do canto da cotovia.
DESOLAÇÃO
(É
do Benedito, sim)
De repente, uma faísca,
duas faíscas, três ou mais...
De repente, as labaredas...
Famintas, lambem veredas
E outras mais, mais e mais;
O que estiver à vista.
Não comem pelas beiradas,
Nem lhes incomodam brigadas
Ou “Forças Nacionais”.
O fogaréu devora
O que restava outrora.
Paisagem morta, fogueira acesa;
Madeiras em chamas, carvão ou brasa;
Arames, lisos ou farpados,
Agora retorcidos, cobras vermelhas;
Fios descascados, cremados...
já não servem mais...
A fúria come o verde, qualquer cor;
Não importa a dor
Ou se a vida é morta.
O amarelo come o verde e os animais
É a língua fogosa em malvadeza,
Destruindo a natureza !!!
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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