Comentários sobre o Programa “FUTURE-SE”,
do MEC
O DESMONTE DAS UNIVERSIDADES FEDERAIS
*Por Benedito Ferreira Marques
A
comunidade universitária brasileira (professores, estudantes e servidores das Universidades
Federais no Brasil) foram convocadas para debater uma proposta do Ministério da
Educação (MEC), sob o título FUTURE-SE. Finalmente, um projeto voltado para
parte dos desafios da Educação no Brasil. Tal projeto foi lançado pelo atual
governo federal, há poucos dias do recém-findo mês de julho de 2019. Ainda que
se tenha criado um novo “verbo”, manifesto minhas alvíssaras!
Como
coadjuvante que fui na gestão de uma Universidade Pública (UFG), vivenciei
experiências que me permitem tecer os primeiros comentários acerca do festejado
Programa, cujo debate foi e está aberto a todos quantos se interessarem, até o
envio do Projeto ao Congresso Nacional. Ainda não se sabe qual o formato da
iniciativa legislativa; tanto pode ser um PL (Projeto de Lei) ou uma PEC
(Proposta de Emenda à Constituição). O que não me parece aceitável é uma Medida
Provisória ou um Decreto, como tem sido a marca do Governo federal do momento,
que tudo pode e tudo é factível, em nome de 57 milhões de votos que o ungido já
não tem.
Nesta
análise preliminar, penso que toda a discussão há que ser orientada pelo
conteúdo do artigo 207 da Constituição Federal, assim expresso: “As
universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de
gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da
indissociabilidade entre o ensino, pesquisa e extensão”.
Embora
pretenda voltar ao tema outras vezes, aqui mesmo nesta coluna, qualquer daqueles
formatos de proposta legislativa permeia tanto a Constituição Federal, como
Leis infraconstitucionais, notadamente, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação – Lei federal n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996), elaborada sob os
princípios constitucionais embutidos no citado artigo 207 da “Lei Maior” do
País.
O assunto é do meu interesse, não mais por
mim, que fui alcançado pela aposentadoria compulsória, desde 2009, mas pelo
futuro das gerações jovens de hoje e vindouras que ainda não ingressaram em uma
Instituição Federal de Ensino Superior (IFE’s), até porque as mudanças
anunciadas no lançamento dos eixos do ambicioso Programa afetam os três
segmentos que compõem a estrutura funcional da academia, em nível de
financiamento público. Explica-se e justifica-se, portanto, um debate amplo e
livre de amarras ideológicas hostis, principalmente está em jogo o futuro das
Universidades Públicas, em nível federal, de tantas e gloriosas conquistas que
não podem ser destruídas por ímpetos momentâneos, que tanto podem ser uma ideia
salutar e reformista, como também podem ser uma “cortina de fumaça”, para
justificar contingenciamentos de verbas. Tenho fundadas dúvidas, sinceramente! Nesses
7 meses do governo autointulado “nova
política”, já foram feitos dois desses contingenciamentos (na verdade, cortes,
pois as verbas não voltarão mais), atingindo agora até mesmo o ensino básico,
como se viu há uma semana atrás.
Através da mídia acessível às minhas
limitações visuais, assisti à apresentação do projeto, após o que agreguei algumas
informações colhidas através de leituras adicionais, catadas, aqui e ali, o suficiente
para me permitir fazer uma primeira avaliação, à guisa de participação indireta
no debate proposto. É óbvio que ainda não se pode extrair conclusões
definitivas sobre as linhas que nortearam a proposta. Mas já se pode vislumbrar
um direcionamento ideológico para as mudanças almejadas. Nota-se uma inclinação
para a privatização das Universidades Públicas federais, não abruptamente, mas
a médio e longo prazo. A entrega da gestão para Organizações Sociais (OS’s),
por exemplo, é uma sinalização forte para a minha compreensão prematura,
porquanto o apresentador das propostas deixou escapar colocações sintomáticas.
A primeira referiu-se à ideia de “deixar os reitores darem aulas e se
despreocuparem com a gestão de recursos e aplicações discricionárias. O segundo escape residiu no apelo ao ensino
voltado para o empreendedorismo, estimulando os docentes a construírem projetos
para “venderem” à iniciativa privada, insinuando que “ficariam ricos” (!?),
ganhando mais do que ganham atualmente. Vale dizer, o corpo docente deverá ser
convencido a direcionar suas atividades para a lucratividade, mediante a
mercantilização do conhecimento, em forma de projetos de pesquisas alienáveis,
como se fosse um produto, uma mercadoria, valendo-se da intermediação da
Universidade a cujo quadro pertença, que também participará desses resultados.
A ideia de “serviço público”, de “socialização do conhecimento” cede espaço à exploração
capitalista do saber. Essa deverá ser a lógica.
Logo aí se oferecem ingredientes para o
debate. O primeiro consiste na compatibilização da gestão da Universidade com
Organização Social (O.S) e os órgãos centrais de administração das
Universidades, incluindo-se, aí, o papel do reitor e das pró-reitorias. O
segundo ponto situa-se no caráter facultativo do Programa, ou seja, as
Universidades podem ou não aderir às diretrizes programadas. Destarte, se a
adesão não for manifestada por todas as Universidades Federais, as Instituições
que não aderirem poderão perder ou ganhar, sendo certo que todas dependem de
recursos financeiros para a condução do tripé indissociável das Universidades, claramente
cravado no art. 207 da Constituição Federal: ensino, pesquisa e extensão. Com
esse provável cenário, arrisco-me a conjeturar a estratégia maquiavélica de
“dividir para enfraquecer”!!!
Nesse
cenário, a implementação do FUTURE-SE teria como primeiro resultado o
estabelecimento de uma competição entre as Universidades que, à sua vez,
enfrentariam divisões internas entre docentes, na linha da quebra da isonomia
salarial. Estimular-se-ia, desse modo, a divisão dos corpos docentes, o que se
refletiria no desempenho de suas atividades, sobretudo do ensino. O professor
não pesquisador passaria a pertencer a uma categoria inferiorizada, ainda que o
seu capital intelectual fosse de excelência, comprovada no concurso público a
que se submetera.
Outro ponto que poderá ensejar questionamentos
- também de natureza não isonômica -, seria o acirramento da discussão entre
cursos de áreas mais propicias a projetos de maior interesse econômico para o
setor privado, e os que não oferecem atrativos visíveis com a mesma
intensidade, tais como os cursos da área de Humanas, como Direito, Filosofia,
Sociologia, Antropologia, História, Geografia, Jornalismo e até mesmo os de
LIBRAS (Linguagem Brasileira de Sinais) que já existem em nível de graduação em
algumas universidades, como a UFG. Oportuniza-se lembrar, neste passo, que
esses cursos acima lembrados não reúnem simpatia no atual governo federal e,
consequentemente, do Ministério da Educação. Estariam fadados a figurarem na
periferia das prioridades institucionais, atingindo, letalmente, desejos e
ambições represadas no universo dos estudantes do ensino médio. Seria uma pena!
Um terceiro ponto a merecer atenção é a
entrega da gestão das Universidades Federais a Organizações Sociais (OS’s), sob
o pretexto de garantir “maior eficiência na administração dos recursos
financeiros” carreados para as Instituições, seja por via orçamentária da
União, seja por vias oblíquas, com parcerias junto ao setor privado e com
arrecadações possíveis de um “acervo patrimonial imobiliário” da União, que
seria disponibilizado para a formação de um “Fundo Soberano”! A conferir.
É isso que se extrai da própria conceituação
dada ao FUTURE-SE e dos Eixos que o norteiam. Com efeito, diz-se que é um
projeto que “busca o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e
de gestão das universidades e institutos federais”, cujas atividades serão
desenvolvidas por meio de parcerias com organizações sociais, ações essas
distribuídas em três eixos, a saber: gestão, governança e empreendedorismo.
Na minha avaliação preliminar, desses três
eixos salva-se o empreendedorismo, que já vem sendo incentivado nas
Universidades Federais desde os anos 80, através das incubadoras. Quanto aos
dois outros, o que transparece é o início do desmonte das Instituições Federais
de Ensino (IFE’s) Primeiro, com o aniquilamento da autonomia financeira, que
será delegada a uma O.S., reduzindo-se, substancialmente, o poder
discricionário dos reitores e, com eles, dos pró-reitores, principalmente o de
administração e finanças. Configurar-se-á o que os romanos chamavam capitis
diminutio (perda de capacidade, no caso, operacional). Em segundo lugar,
estar-se-á fomentando a divisão dos corpos docentes, a depender de suas áreas
de atuação. Essa divisão não será benéfica, porque se refletirá no desempenho
do professor em sala de aula e, consequentemente, na qualidade do ensino. Por via
direta, serão prejudicados os estudantes. O pano de fundo será a diferença de
ganhos pecuniários - para não chamar “salariais” -, estimulados por projetos de
pesquisa alienável ao setor privado. Ganharão mais os que produzirem projetos
competitivos no mercado, relevando-se a segundo plano o ensino e a extensão, e
priorizando-se a pesquisa.
Ora,
a gestão financeira e as demais que justificam a administração de uma
universidade são fiscalizadas por diferentes olhares de vários órgãos
instituídos, tais como os órgãos internos (compostos pelos três segmentos (professores,
estudantes e servidores); pela CGU (Controladoria Geral da União); pelo TCU
(Tribunal de Contas da União) e pelo Ministério Público Federal (Procuradoria
Geral da República). Entregar a gestão financeira para Organizações Sociais (OS’s)
significará, na minha visão, o desmonte das Universidades e, por efeito, a privatização
gradativa do ensino superior, vedando-se o acesso às camadas sociais mais
desfavorecidas.
Não me animo, portanto, a aplaudir o programa FUTURE-SE.
Fazer o quê? Discuti-lo e resistir à estratégia privatizante, por se constituir
um retrocesso.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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