Análise
abstrata sobre fatos concretos.
*Por Benedito Ferreira Marques
Um amigo de longa
data surpreendeu-me com uma pergunta intrigante: qual a diferença entre os significados de nepotismo e despotismo? A
minha primeira resposta foi outra pergunta, indagando-lhe as razões da
curiosidade. Respondeu-me que queria saber o enquadramento da indicação do
filho do Presidente da República para ser o Embaixador do Brasil nos Estados
Unidos.
Sem demonstrar perplexidade, comecei a satisfazer à
curiosidade do meu interlocutor, adiantando-lhe que, embora os conceitos fossem
diferenciados, para o bombástico fato político, terminariam se confundindo.
De fato, a notícia da intenção do “Senhor” Presidente da
República de indicar um dos seus filhos para ser Embaixador do Brasil, nos
Estados Unidos, terminou obnubilando a aprovação, em primeiro turno, da tão
falada “Nova Previdência” na Câmara dos Deputados. É que o impacto não se deu
apenas nos meios políticos e entre os diplomatas de carreira, mas em toda a
sociedade que acompanha o atual momento político brasileiro. E o mais pitoresco
nesse cenário de “filme não censurado” foi a apresentação das credenciais do candidato
feita por ele mesmo, para merecer a indicação: fala Inglês e Espanhol,
enfrentou frios nos EUA e até aprendeu a fazer hamburger!!!
Pois bem.
Segundo os dicionários, “NEPOTISMO é um termo utilizado para
designar favorecimento de parentes próximos em detrimento de pessoas mais
qualificadas, geralmente no que diz respeito à nomeação ou elevação de cargos
públicos e políticos”. Etimologicamente, esse vocábulo tem origem no Latim,
que significava, literalmente, “neto” ou “descendente”. Já o vocábulo DESPOTISMO “é uma forma de governo, no qual todo o poder está
concentrado em apenas um governante, de maneira isolada e arbitrária. É
praticado por um déspota; um indivíduo que utiliza seu poder para tiranizar e
oprimir os que não seguem suas normas”.
Postas, assim, as definições vocabulares, entendo que, para melhor
compreensão do fato concreto, em si mesmo, o assunto comporta considerações sob
os aspectos jurídico e político. Do ponto de vista jurídico,
cabe lembrar que o Brasil vive sob a égide do regime democrático e, portanto,
orienta-se por uma Constituição Federal elaborada em Assembleia Constituinte,
em cujos fundamentos se exalta, entre outros, o proclamado “estado democrático
de direito”, o que afasta, em princípio, a ideia de governança tirânica, vale
dizer, despótica, à luz do conceito de despotismo
acima informado. Mas, consideradas as
circunstâncias do fato político noticiado com largos espaços na mídia, reina uma
espantosa perplexidade em todos os setores da sociedade que divide opiniões
para além do espectro jurídico. O Presidente da República tem, sim, a faculdade
de indicar qualquer cidadão, mesmo não sendo parente nem diplomata, para o elevado
posto de Embaixador em qualquer país, inclusive nos Estados Unidos da América. É
o que está posto no artigo 84, inciso VII, da Constituição Federal, que foi jurada
pelo “Senhor” Presidente da República, perante o Congresso Nacional, no dia de
sua posse.
Ocorre, todavia, que outra regra insculpida no art.52,
inciso IV, da mesma Constituição, exige a aprovação prévia do escolhido pelo
Senado Federal, regra essa que tem o seguinte teor: “Artigo 52. Compete privativamente ao Senado
Federal: ...IV – aprovar previamente, por voto secreto, após arguição em sessão
secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente”.
Isso significa que não basta a escolha do Presidente da República, pois o texto
constitucional condiciona a concretude dessa escolha e subsequente nomeação à
aprovação pelo Senado da República, após arguição prévia, vulgarmente apelidada
como “sabatina”. É dizer, não há um poder
absoluto do “Senhor” Presidente da República, o que, pela Constituição
jurada no dia 1º de janeiro de 2019, não pode concretizar, sem o crivo de outro
Poder (o Legislativo) a sua escolha pessoal.
Admitindo-se, em tese, que
a escolha - declaradamente já definida na voz do próprio Presidente,
transmitida na mídia, no dia 16.7.2019 -, seja aprovada no plenário do Senado,
em votação secreta, precedida da arguição (sabatina), dar-se-á a nomeação e o
assunto estará encerrado, “doa a quem doer”, porque teriam sido cumpridas as
regras pertinentes. Ressalve-se, no entanto, a possibilidade de recuo
ou de novos acontecimentos que possam desfazer a vontade presidencial. Tudo é
possível nesse governo, seja para dizer que não há pessoas famintas no Brasil,
seja para excluir governadores nordestinos
de qualquer ajuda do Governo
Federal - principalmente o do Maranhão, que considera o ”pior deles”. Se isso não é despotismo, num país federativo, que se mude, então, o conceito.
É compreensível que
surjam questionamentos os mais diversos, seja no campo político, seja no campo
até mesmo da moralidade pública, porquanto a mera notícia da intenção da
indicação já provocou chacotas de toda ordem na mídia. No intermeio das lucubrações possíveis, o
“Senhor” Presidente da República incursionou no campo jurídico, para dizer que
se considera respaldado numa Súmula do Supremo Tribunal Federal. Embora não
tenha mencionado qual a súmula, creio que se trata da Súmula Vinculante nº 13. Se, realmente, foi esse o verbete que lhe
informaram – já que não é da área -, atrevo-me a discordar da interpretação. A
meu ver, a Súmula 13 (vinculante para todos os casos similares), o sentido é oposto.
O intérprete enganou o Presidente, pois o Ministro Marco Aurélio de Melo foi o primeiro a verberar contra a malsinada
indicação, ainda no campo da cogitação, qualificando a hipótese como nepotismo.
Como jurista que me considero, acho que o Ministro do STF está coberto de razão
em sua opinião, manifestada fora de qualquer processo – ressalve-se, a bem da
verdade.
Impõe-se ressaltar que o posto de Embaixador do Brasil nos Estados
Unidos já foi ocupado por figuras marcantes de nossa História, como Joaquim
Nabuco, Osvaldo Aranha e tantos outros. Com certeza, suas escolhas não foram
baseadas em dotes culinários, e muito menos porque a imprensa de então as criticara.
Ao justificar a minha linha de raciocínio, sugiro que o leitor faça o
confronto dos conceitos transcritos na parte preambular deste texto. Pelo menos
para mim, sem qualquer viés contestatório sistemático, nepotismo e despotismo se apresentam de mãos dadas no
fato concreto. Aliás, não me parece
exagero o neologismo “filhotismo”, que já circula na mídia. Também não seria
exagero dizer-se que o governo brasileiro está sob a égide de um regime que se
poderia chamar “familiocracia”, considerados diversos fatos políticos
divulgados pela imprensa. A declaração feita pessoalmente pelo “Senhor”
Presidente, de que quer, sim, “beneficiar o seu filho”, fala por si mesma. Dane-se o Governador do Maranhão e sirva-se o
“pirão” primeiro ao filhote erudito! Essa é a lógica do ocupante do Planalto.
Não se desconhece que
certos comportamentos presidenciais têm causado perplexidade na sociedade, até
mesmo entre os que seguem a linha ideológica do “Senhor” Presidente da “nova
política”. Mas não se pode – nem se deve, evidentemente -, abstrair a
possibilidade de que outros disparates possam surgir, autorizando os
críticos a fazerem conjeturas sombrias para o futuro, ainda que sejam tachados
de “pessimistas” ou “impatriotas”. Tudo pode acontecer, até
mesmo recuos, como já ocorreram nos
famosos decretos de posse e porte de armas de fogo. Cumpre observar, no
entanto, que o ímpeto presidencial parece irreversível, no caso analisado, seja
porque se trata de exposição pública do seu filho, seja porque já considerou,
como critério de acerto de sua decisão, a rejeição à sua intenção e as críticas
veiculadas na imprensa. Se este é o critério, não há como fugir de um típico
lance de despotismo.
Tudo pode acontecer, em nome e por conta de uma maioria
eleitoral fluida, ocasionalmente obtida no pleito eleitoral de 2018, que já
começa a se deteriorar, segundo as pesquisas de opinião pública. Nos seis primeiros
meses de governo (ou 200 dias), tudo aconteceu e nada aconteceu. Um paradoxo
facilmente explicável. Não por acaso, quatro manifestações de ruas – duas
contra e duas a favor do novo governo -, demonstraram que o
País está dividido em três partes: a
favor, contra e indiferentes (ou desalentados). E o pior
é que não se vislumbram perspectivas alentadoras a curto e médio prazo. O que se avista no horizonte é um amanhecer desanimador
para o Brasil, a despeito das convicções contrárias do “Senhor” Presidente da
República. O mês de agosto sempre foi
fatídico (renúncia de Jânio Quadros, suicídio de Getúlio, morte de
Juscelino...)
Com essas considerações, o que se almeja é que o Senado Federal
cumpra o seu papel constitucional de conduzir a arguição que lhe compete e a
votação secreta do Plenário, com o pensamento voltado para a manutenção do
regime democrático, afastando nuances despóticas e inibindo o nepotismo.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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