Reflexões sobre os decretos de flexibilização de posse e porte
de armas de fogo.
TIRA O
TIRO
Um homem acordou, tarde da noite, com um
barulho na parte térrea de sua casa. Desconfiou que fosse um ladrão. Pegou seu
revólver calibre 38 e, de pé ante pé, pisando suavemente para surpreender o
possível larápio, e, no primeiro degrau da escadaria que separava os dois
pavimentos, tomou um tiro certeiro vindo de baixo e caiu morto, ali mesmo. O
criminoso fugiu. O fato é real, pois a vítima era o meu dentista nos idos dos
anos 70 do século passado.
Contou-me uma fonte fidedigna que um amigo seu
chegara em sua casa e, quando abriu o portão da garagem com o controle remoto,
um assaltante conseguiu entrar, sorrateiramente, atrás do veículo. Esperou por
alguns instantes e começou a ação. Adentrou a casa e rendeu a esposa e a filha
do recém-chegado e gritou: “Sua esposa e
sua filha estão comigo. Não vou fazer mal a ninguém; só quero o dinheiro e as
joias”. Uma voz firme e segura de si mesmo ecoou do banheiro: “Não faça nada com a minha família; já vou
indo com todo o dinheiro que tenho e as joias”. Vestiu seu corpo molhado
com a toalha de banho e, de um lugar estratégico, apertou o gatilho. Um tiro
certeiro na cabeça do bandido, que caiu ali mesmo. Friamente, o atirador
telefonou para a Polícia para ir buscar o cadáver. Nada lhe aconteceu, por
configurar-se legítima defesa da vida e do patrimônio.
Outro
episódio foi noticiado pela imprensa com a seguinte manchete: “Motorista imprudente mata com arma de fogo
em rua movimentada”. O assassino havia batido o seu veículo na traseira de
outro que estava à sua frente, sem observar que o sinal vermelho do semáforo
estava aceso. Os dois condutores saíram de seus veículos e começou a discussão.
- Veja o que você fez; acabou com a traseira
do meu carro; você não viu que o sinal estava fechado, seu barbeiro?
- Calma, vamos resolver isso numa boa;
reconheço o meu erro; deixe-me ir buscar um cartão com meu endereço, para a
gente resolver isso depois; olhe que o trânsito já está ficando engarrafado”. Foi ao
carro e voltou com um revólver e, sem demora, puxou o gatilho e deitou ao chão
quem tinha razão. Sequer avaliou que podia acertar qualquer das pessoas que ali
estavam, levadas pela curiosidade do entrevero comum nos trânsitos urbanos. Um
policial, que chegava, ali, prendeu-o em flagrante e o levou à Delegacia.
- Não viu o sinal fechado? –
indagou o Delegado.
- Doutor, eu sei que errei, mas ele me chamou
de “barbeiro” e perdi a cabeça. Agi em legítima defesa de minha honra”... Certamente, foi condenado
no processo criminal instaurado por homicídio doloso com a agravante de motivo
fútil.
Esses
três episódios, que se prestam ao enredo introdutório desta narrativa, vêm a
propósito dos dois decretos baixados pelo Presidente da República,
recentemente, flexibilizando a posse
e o porte de armas de fogo. Tais
decretos estão provocando muitas discussões e, ao que estou informado, já
enfrentam questionamentos na Justiça, seja quanto à sua ilegalidade frente ao Estatuto do Desarmamento, seja até mesmo
em face da Constituição Federal.
Não me
anima o intuito de comentar os decretos presidenciais, ainda que me ocorram
discordâncias de conteúdo e de ordem jurídica, e até do ponto de vista de
técnica legislativa. Ademais, o primeiro decreto contém 67 artigos, além dos
seus parágrafos, incisos e alíneas, cuja análise não cabe no espaço desta
coluna. O que inspira minhas reflexões se apoia em premissas realistas
demonstradas nos três episódios narrados a título preambular, e da avaliação
dos informes adicionais colhidos na imprensa, o que será revelado em frente.
No dia 3.6.2019, o IBOPE divulgou uma pesquisa,
segundo a qual 61% dos pesquisados se manifestaram contra a posse
de arma de fogo, e 73%, contra o porte. Também no corrente mês de
junho (dia 5.6.2019), matéria publicada pela UOL dá conta de impactantes
informações contidas em pesquisa realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada), de acordo com a qual, somente no ano de 2017, foram registradas
65.602 mortes violentas no Brasil, e
que a taxa de homicídios em nosso país chegou a 31,6 mortes a cada 100 mil habitantes. Ainda conforme a mesma
pesquisa, o percentual de mortes com armas de fogo atingiu o maior patamar já
registrado no País, chegando a 72,4% dos homicídios em 2017. Ao todo,
foram 47.510 por armas de fogo.
Desde 1980, quase 1 milhão (mais precisamente, 955mil) de mortos foram vítimas de armas de fogo. Segundo os
pesquisadores, o número poderia ser maior, sem o Estatuto do Desarmamento sancionado em 2003. O Atlas/Violência diz que a ideia de que pessoas armadas vão reduzir
o número de mortes é um “erro científico”. Diz mais que “a arma de fogo no ambiente
urbano é um bom instrumento de ataque, mas um péssimo instrumento de defesa”. Considero
importante transcrever os percentuais apurados de cinco em cinco anos: em
1980-43,9%; em 1985 – 42,3%; em 1990-51,9%; em 1995-60,1%; em 2000-68%; em
2005-70,2%; em 2010-70,4%; em 2015-71,9%; e em 2017-72,4%.
Não
consigo acreditar que haja alguém que não se assuste com esses números de
mortes, todas com armas de fogo, nesses 37 anos! Não há o que discutir sobre
percentuais tão alarmantes.
No
entanto, o Senhor Presidente da República resolveu “cumprir promessas de
campanha” e baixou o Decreto n°9.785, no dia 7.5.2019, e, em evidente recuo, o
Decreto n°9.797, no dia 21 do mesmo mês, para corrigir distorções, o que fez
acossado pela avalanche de críticas dos mais diferentes segmentos da sociedade.
Ao que se comenta na imprensa, aumentaram-se as distorções e a questão jurídica
continua acirrada nos meios jurídicos e na população em geral.
Particularmente para mim, entretanto, o tema
há de ser analisado sob o prisma dos fundamentos
que nortearam a edição desses decretos, ainda mais se levarmos em consideração
o ambiente de insegurança que ainda reina em nosso país, no momento em que
dezenas de seres humanos são mortos nos presídios de Manaus, classificado o
episódio como uma verdadeira chacina.
Com
efeito, colho na fala do próprio Presidente a verdadeira motivação para essa chamada “flexibilização
de uso de armas de fogo”. Faço questão de transcrever, literalmente, um
trecho da fala presidencial à imprensa, durante a cerimônia de assinatura do
edito:
“(...) O
nosso decreto não é um projeto de segurança pública. É, no nosso entendimento,
algo mais importante. É um direito individual daquele que, porventura, queira
ter uma arma de fogo, buscar a posse, que seja direito dele, respeitando alguns
requisitos”.
Pelo que
se lê no excerto acima, o signatário do criticado decreto, já apelidado de “flexibilização de posse e de porte de armas
de fogo”, caminhou nas veredas do “direito
de propriedade”, que considerou “mais
importante” do que qualquer projeto de segurança para o País. Ficou a
impressão de que o Chefe do Poder Executivo da União quis afastar eventuais
conjeturas relacionadas com o chamado “Pacote anticrime” do seu Ministro de
Justiça e Segurança Nacional, ainda em tramitação no Congresso Nacional. Se
esse foi o propósito, o “Pacote anticrime” restou apequenado, na mais lúcida
interpretação do discurso presidencial, transcrito acima.
A esse
respeito, não se nega que o direito de
propriedade está claramente assegurado no artigo 5° da Constituição
Federal, desde que, evidentemente, o objeto seja lícito. Para o “Senhor Presidente”, a sociedade pode ser armada
licitamente, mas não para combater a violência e o crime, ou defender-se
legitimamente, e, sim, para exercer um direito de propriedade. É
o que se pode extrair da explicação presidencial dada à imprensa. É dizer, o
sentido é de patrimonialidade,
afeiçoada à política econômica do seu governo, que preconiza a privatização até
dos bancos oficiais (Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES). Só não vê quem
não quer.
Partindo-se
dessa premissa, os chamados “sem-terra”, agregados no MST, também podem
reivindicar o seu direito de acesso à terra, de conformidade com o inciso XXII do
mesmo artigo 5° da “Lei Maior” do País. E, com esse raciocínio, preocupam-me
possíveis enfrentamentos com graves consequências para a paz social. A luta
pela terra não é de hoje, nem de ontem, no chamado período do “lulopetismo”.
Essa aguerrida luta vem desde o Estatuto da Terra, editado em 1964, em pleno
regime de governos militares. Não se pode imaginar que, por efeito do comentado
decreto, essa luta vai esmaecer. Na minha percepção, o conflito tornou-se mais
aguçado.
O meu
temor é o enfrentamento entre os que buscam ocupações de propriedades ociosas
(latifúndios improdutivos) e os que se escoram em escrituras registradas em
cartórios imobiliários, sem nenhuma preocupação com o cumprimento da função
social da terra, disciplinada na mesma Constituição Federal. É o que se
lê, claramente, nos artigos 184 e 186 da Carta Magna.
Portanto,
esses conflitos poderão eclodir, e isso não faz bem ao Brasil, que busca sua
afirmação como nação socialmente justa e economicamente fortalecida. Se a
liberação de armas de fogo pode ensejar mais mortes do que já vêm ocorrendo, o
tiro não traz tranquilidade à sociedade, conforme demonstram as pesquisas do
IBOPE, acima anunciadas.
Ainda à
guisa de reflexões, fico a imaginar os riscos que armas de fogo em casa - com
crianças ou até mesmo com jovens que a elas não podem ter acesso -; fico a
pensar em outras situações factíveis, que a própria mídia noticia, tais como:
acidentes ocasionais; pessoas que saem de casa deixando problemas internos ou
levando problemas externos, estressadas com compromissos a saldar; com o medo
de perder o emprego, porque é instável e está atrasado em seu horário;
entreveros banais que, a todo momento, ocorrem no trânsito conturbado nos
grandes centros urbanos; enfrentamentos marcados por sentimentos de vindita,
por ódio, inveja ou ciúmes, e tantas outras causas. Todas essas situações devem
ser refletidas por todos que têm responsabilidade e juízo.
Para mim,
particularmente, não se sustentam os argumentos favoráveis ao que disciplinam
os decretos editados. Alguns dizem que constitui um direito; outros verberam
que é uma garantia de segurança,
em meio à violência desenfreada que pacotes anticrimes não se mostram eficazes;
outros há que advogam o direito de acionarem uma arma de fogo em legítima
defesa da vida, da propriedade e da honra.
Esses
raciocínios não se harmonizam com a realidade. Os bandidos estão armados e
sabem manusear suas armas. Não se pode garantir o mesmo dos que se classificam
como pessoas do BEM.
Ouso
manifestar, portanto, enquanto cidadão livre e conscientizado, o meu desagrado
aos malsinados decretos – seja o de n°9.785/2019, que acendeu a discussão; seja
o de n°9.797/2019, que foi editado para tentar “corrigir distorções”.
Não aos
decretos de liberação de posse e porte de armas de fogo; não ao tiro.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais. NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás. Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros
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Coluna do Benedito