Comentário
sobre a entrevista de Lula e o julgamento do seu recurso no STJ.
LULA: protagonista de dois fatos.
Goste-se
ou não do Lula. Nutra o seu ódio contra o ex-Presidente. Responsabilize-o pela
desgraça brasileira e os malefícios do seu Partido (PT). Manifeste o seu nojo,
sua raiva, sua ojeriza e até deseje que ele apodreça na cadeia. Tudo isso tenho
ouvido e lido. Mas ninguém, de sã consciência,
lhe pode negar traços marcantes de sua personalidade forte que muitos dos que o
abominam não têm: resiliência, intrepidez, esperança na sua absolvição – ainda
que, para muitos, pareça “incrível” (!?) -, e confiança no Supremo Tribunal Federal.
O
mês de abril de 2019 foi marcado por dois acontecimentos, em que o
ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o principal protagonista. Refiro-me
ao julgamento de um dos seus recursos no Superior Tribunal de Justiça(STJ) e a
entrevista que concedeu a dois jornalistas, devidamente autorizado pelo
Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), portanto, Chefe de um dos Poderes
da República – o Judiciário. Este registro faz-se necessário, porque a mídia
divulgou, sem reservas, que o Chefe de outro Poder da República declarou que
não devia ter sido dada a autorização para tal entrevista. E não o fez como
cidadão comum. Foi assim que entendi, como cidadão brasileiro comum. Faço essa observação sem titubeios e sem desrespeito,
na medida em que a liberdade de expressão e a manifestação de pensamento
constituem pilares do Estado Democrático de Direito, em suma, da DEMOCRACIA.
Ademais, sempre entendi que decisão judicial se cumpre; não se discute.
Pois
bem. A entrevista foi longa e, por ter sido repassada pela mídia, suponho que
grande parcela da população dela tomou conhecimento e fez seus juízos. Também
fiz os meus, mas me aterei, neste comentário, apenas a três momentos da
entrevista que considero importante enfocar, e a algumas nuances sobre o julgamento
na Corte Superior. Fá-lo-ei sem peias e cabrestos monitoradores, vale dizer,
sem amarras ideológicas.
Primeiro,
consigno a resposta “curta e grossa” – como diz o vulgo -, que o entrevistado deu
à pergunta quanto à possibilidade de ficar o resto da vida na cadeia: “Não
tem problema; durmo em paz com a minha consciência...” Segundo: “Passarei
100 anos preso, mas não trocarei minha dignidade pela liberdade”. E o
terceiro: “Por incrível que pareça, acredito...” (resposta à pergunta se
acreditava em sua absolvição).
O
primeiro ponto chama-se resiliência,
o que, aliás, foi realçado em carta da famosíssima cantora Maria Bethânia,
divulgada nas redes sociais. A expressão “não tem problema” reflete, a meu juízo, mais do que conformação com o
tempo que está na prisão (mais de um ano
de segregação, ainda que em sala especial). Percebe-se uma espantosa convicção
de que se considera inocente, e que a sua condenação e subsequente prisão não foram
suficientes para que assumisse a culpa que lhe foi imputada. Ao contrário, esses
dois eventos lhe serviram para acirrar o ânimo de lutar para demonstrar sua
inocência. A alocução “...não trocarei minha dignidade pela
liberdade” revela uma incrível determinação de não se entregar aos
encantos do tipo “prisão domiciliar” ou “regime semiaberto”. Qualquer dessas
opções que já lhe foram sugeridas, a seu sentir, compromete a dignidade
autoproclamada, que preserva e lhe serve de aporte insubstituível para seus
desígnios. O terceiro ponto foi a resposta à pergunta sobre sua crença na
absolvição: “Por incrível que pareça, acredito...” Essa resposta não apenas
passa a qualquer observador minimamente responsável a compreensão de que ele
acredita no Supremo Tribunal Federal, ainda que não saiba que a Corte Suprema
somente aprecia e julga recursos contra decisões que afrontem a Constituição
Federal. Talvez o entrevistado esteja depositando suas esperanças no julgamento
da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que estava em pautado
para o dia 10.04.2019, mas foi adiado sem data marcada. Esse julgamento poderá
resgatar o entendimento que prevalecia antes de 2016, segundo o qual a execução
da pena somente poderia ser iniciada depois do trânsito em julgado da sentença,
conforme já me reportei nesta coluna em outro texto. Vale dizer, a chamada ADPF
tem por objeto restabelecer o princípio da presunção
da inocência, que foi quebrado com o entendimento vigorante de que a
execução da pena se inicia depois da confirmação da sentença por um colegiado,
como foi o caso do TRF-4.
Não
se pode tangenciar, ainda a respeito daquela instantânea resposta, que a
alocução “por incrível que pareça”
induziu o interlocutor e quem sobre ela refletiu que
ele sabe que muitos não acreditam na reversão da sua condenação, ou seja, ele
sabe dos riscos que corre, pelas evidências das circunstâncias
com que os processos contra ele instaurados têm sido conduzidos. É mais um
traço diferenciador de sua personalidade. A sua crença dirigiu-se aos
incrédulos e, ao mesmo tempo, mandou um recado aos que o querem “apodrecer” no
xadrez. E anunciou que, quando sair, vai correr o Brasil para levantar o ânimo
do povo desalentado. Quanto
ao julgamento do recurso no STJ, a que assisti com atenção e interesse,
chamaram-me a atenção dois aspectos que, a meu ver, podem render
questionamentos, ao menos entre os juristas. Não conheço os autos desse
processo, mas minhas observações estão baseadas nos votos proferidos pelos
Senhores Ministros, cuja linguagem entendo.
A primeira observação refere-se à invocação da SÚMULA 7 do STJ, feita pelos
quatro Ministros que votaram. Ao que me consta, a imprensa, de um modo geral, não
comentou esse pormenor, a meu pensar, de grande significado para a melhor compreensão
do julgamento. Ao contrário do que, enfaticamente, foi afirmado por certos
segmentos da imprensa, a a tese dos advogados de Lula, quanto à condenação sem provas, não caiu por
terra, porquanto os votos dos Ministros, por unanimidade, não consideraram
“provados” os fatos que justificaram a condenação pela prática dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Como jurista e cidadão responsável, sinto-me
no dever de esclarecer que a conclusão de alguns veículos de comunicação foi
equivocada ou no mínimo tendenciosa, nesse sentido, não sei se por desconhecimento
jurídico sobre a matéria, ou se para alimentar propósitos inconfessados. Todos
os Ministros invocaram, em seus votos, a Súmula
n°7 daquele Tribunal, para justificarem as razões por que não adentraram a
certos questionamentos suscitados no recurso. O enunciado de tal Súmula merece
ser transcrito para quem a desconhece:
Súmula
7 – A pretensão de simples reexame de provas não
enseja recurso especial.
Nada tão claro! Para quem sabe ler, um pingo é letra.
Ora,
se o verbete acima transcrito dispõe que o STJ não reexamina provas em recurso
especial – que era o caso, já em nível de agravo
interno -, e se os eminentes Ministros (todos) invocaram a dita Súmula 7, em seus votos, salta aos
olhos mais infantis que não se ativeram ao reexame de provas e de fatos constantes
dos volumosos autos do processo. Uma coisa anula outra. Se não reexaminaram as
provas, não há falar que a condenação
foi confirmada pelo STJ, baseada em provas. Informar é preciso, mas
informar com a certeza da informação, para que a opinião pública seja formada
em bases não enganosas. Opinião pública
construída em bases equivocadas e tendenciosas não faz bem ao regime
democrático – convenhamos.
O
outro ponto que me espantou no julgamento ora comentado foi o final do voto do
último Ministro a votar, ao enfatizar,
com veemência, que “era obrigado” (disse-o duas vezes) a fixar a pena de multa
em R$2 milhões e 400 quatrocentos mil reais, porque tinha certeza de que o recorrente
(Lula) não se beneficiou do apartamento, nem com o exercício da posse nem com a
obtenção do título de propriedade em seu nome. Destarte, se o conspícuo
magistrado do STJ proclamou, alto e bom som, ter certeza de que o recorrente
não se beneficiou do apartamento, pode-se retirar a inarredável conclusão de
que Sua Excelência “deu uma espiadinha” nos autos, embora lhe fosse vedada pela
invocada Súmula 7-STJ. E mais que isso: ao menos parcialmente, afastou
imputações ao réu (recorrente), pois devia ter explicado porque “tinha
certeza”. Não pode ser ladeado que o inciso IX do art. 93 da Constituição
Federal normatiza que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário
serão públicos e fundamentados, sob pena de nulidade...”. Creio que
os ilustres advogados do ex-Presidente estejam atentos a esse detalhe! Ao meu olhar, o voto eloquente do nobre
Ministro maculou o julgamento. Primeiro, porque caiu em contradição, acompanhando
os seus pares, quanto à redução da multa de R$29 milhões para pouco mais de R$2
milhões de reais., dizendo-se “obrigado” a fazê-lo, sem fundamentar a grave
afirmação, embora tivesse certeza de que o condenado não usufruíra do
apartamento. Em segundo lugar, porque, ao ter invocado a Súmula 7, não devia ter examinado as provas dos autos, para ter a
convicção de que o réu não tivera proveito algum do apartamento, seja com a
posse, seja com o título de propriedade em seu nome. Para fazer tal afirmação, certamente
reexaminou as provas dos autos, que a Súmula 7 veda, expressamente. Cabia o
mínimo de coerência na colocação imprópria.
Os
advogados do ex-Presidente Lula, certamente, saberão o que fazer desses
escorregões Não sei se os habilidosos patronos de Lula interpuseram ou irão
interpor os recursos cabíveis para corrigir essas distorções. Na minha modesta
visão, há elementos. E concluo repetindo o brocardo: ”Para quem sabe ler, um pingo é
letra”!!!
Com
esses comentários, não tenho o propósito de fazer a defesa do ex-Presidente,
até porque não sou seu advogado. Mas me apraz o desejo de contribuir,
responsavelmente, com a informação sadia, à luz dos meus modestos conhecimentos
na área jurídica. Bem por essas razões, permito-me o atrevimento, sem receio de
“conturbar a ordem pública”, a fazer coro com a fenomenal intérprete da música
popular brasileira Maria Bethania,
até mesmo para prestar minha homenagem póstuma à sua colega Beth Carvalho. Não irei segurar as mãos
do encarcerado, por me ser fisicamente impossível, mas encorajando-o a segurar
as marcas de sua personalidade retratadas nos três momentos que mais me
impressionaram em sua corajosa entrevista, os meus aplausos pela resiliência,
sem perder a esperança; pela coragem, sem perder o respeito; pela confiança num
julgamento insuspeito, sem perder e a confiança na Instituição Suprema.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004).
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais.
NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás.
Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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Coluna do Benedito