Análise crítica sobre a
sojicultora e o desmonte da agricultura familiar.
*Por Benedito Marques
A SOJA
LIMPA E SUJA
É sabido que a língua portuguesa
praticada no Brasil é rica e crescente, porque está sempre incorporando
neologismos oriundos da criatividade popular, variando de região por região.
Essa explicação preambular poderia ser
dispensada, se o título não parecesse um trocadilho provocativo. Não é esse o
propósito, senão o de despertar consciências desavisadas que, querendo ou não,
estão contribuindo com uma política agrícola que se desenvolve na zona rural
agricultável no Brasil inteiro, em nome do agronegócio e em detrimento da
agricultura familiar. O mote é a produção em grande escala, com o emprego de
máquinas cada vez mais modernas, substituindo o trabalho humano. Faz-se um
discurso argumentativo de que, quanto maior for a produção, maior é a
arrecadação de tributos para os estados e para os municípios, e todo esse bolo
tributário retornaria em forma de benefícios sociais, com a melhoria das
políticas públicas da saúde, da educação, da segurança, da abertura e
conservação de estradas, da perfuração de poços artesianos com água de
qualidade para a população etc. Sem dúvida, é um discurso convincente.
É preciso, porém, alertar para os riscos
predatórios que já se fazem sentir, principalmente com o desmatamento
desenfreado que, impiedosamente, está extinguindo árvores frutíferas das
chapadas e cerrados, que se transformam em campos extensos a perder de vistas,
somente com a monocultura de soja, às vezes de milho ou arroz, em menor escala.
Não precisa ser versado em ciências
agrárias e ambientais, para compreender que essa política agrícola está
equivocada, na perspectiva dos agraristas, porque provoca desequilíbrio na
fauna e na flora, além do que compromete, seriamente, as nascentes próximas a
esses campos, que alimentam os nossos riachos e córregos espalhados em
verdadeiras malhas aquáticas, absolutamente necessárias à preservação e à
manutenção dos recursos naturais renováveis. Já não surpreende o triste
espetáculo de mangueiras seculares deitarem ao chão, por força de fortes
ventanias que sopram sem óbices florestais.
Esta abordagem não pretende condenar o
agronegócio, em si mesmo, até porque a produção volumosa, principalmente da
soja, vem contribuindo para o aumento vertiginoso da exportação de grãos, e,
com isso, mantendo-se em nível satisfatório a chamada balança comercial, tão
festejada pelo governo federal. O que se questiona é o banimento gradual e
irreversível da agricultura familiar, responsável pelos alimentos postos na
mesa dos brasileiros, segundo as estatísticas. Enquanto a produção do
agronegócio enche os navios que abastecem populações de outros países, com
destaque para a China, o campesinato brasileiro perde postos de trabalho e se
entrega a ilusões efêmeras, alienando suas áreas de terras e seus cultivos
tradicionais.
O quadro que se vê, no Brasil inteiro –
como já se emoldura em nosso Município de Buriti e em outros vizinhos -, é
desolador, sobretudo do ponto de vista econômico e social, porque o progresso
prometido é ilusório. É nesse ponto que se encaixa o insinuante trocadilho que
se encerra no título desta narrativa. No embate entre o agronegócio e a agricultura
familiar, não há paridade de armas, é dizer, não se medem pesos e
contrapesos. Poder-se-ia dizer que a Política Agrícola preconizada na
Constituição Federal e nas leis que dela advieram desatende ao princípio básico
da função social da terra, que deve
presidir todas as atividades agrárias. O direito à propriedade é garantido
na Lei Maior do País – e ninguém, de bom senso, é contra isso -, mas esse
direito se submete a condicionamento, que é o cumprimento da função social, que
não se resume apenas na produtividade. A proteção ambiental e o equilíbrio
ecológico constituem pilastras fundamentais na estrutura do conceito de função
social da terra. Devastar florestas com árvores frutíferas extrativas, sem
controle transparente, e, ao mesmo tempo, comprometer o equilíbrio ecológico e
submeter os mananciais aquáticos a riscos de extinção, deixa de ser exploração
racional e adequada, seja porque limpa extensas áreas, transformando-as em
campos de soja, seja porque o assédio negocial para a aquisição de áreas de
acréscimos carrega forte componente persuasivo, com a promessa de melhoria
social, quase sempre, descumprida. Essa metodologia, segundo se informa, tem
sido praticada com êxito, em Buriti, a despeito de alguns zumbidos de
resistência. Para o observador isento - e
não menos atento -, essa prática não merece ser classificada como política
saudável, sob a óptica da teoria do desenvolvimento sustentável. O Brasil é um
país de dimensão continental, que permite a convivência harmoniosa entre o
agronegócio e a agricultura familiar. Não se concebe o maior sobre o menor, o
grande empresário engolindo o pequeno e o médio produtor rural, uma vez que
buscam os mesmos objetivos: produzir para a subsistência com sobras para a
manutenção do consumo interno, e produzir para a exportação. O médio e o
pequeno produtor e a empresa agrária de produção extensiva estão contemplados
no arcabouço jurídico brasileiro, desde o Estatuto da Terra, de 1964, que
combatia o latifúndio e o minifúndio, mas prestigiava a agricultura familiar e
a empresa agrária. O que se abomina é a
volúpia lucrativa sobrepondo-se a vulnerabilidades pontuais que, não raro,
afeta agricultores tradicionais, embevecidos com discursos argumentativos de
fatos aleatórios, valendo-se da poderosa arma do capital fácil e farto, e estimulando
o êxodo rural já elevado. O que está sendo feito é uma reforma agrária às
avessas, com desapropriações privadas cada vez mais intensas,
transformando a paisagem sertaneja em pequenos sítios, cuja produção se reduz a
proporções desalentadoras. Praticamente,
está sendo extinto o cultivo de produtos que fartavam as mesas campesinas de
outros tempos. Gradualmente, estão
desaparecendo as culturas de subsistência dos agricultores familiares, cedendo
espaço à monocultura de soja e de alguns produtos destinados à exportação. É
como se fosse uma nova “Base de Alcântara”, que desagregou comunidades e já
ameaça a extinção de culturas e costumes, a troco de tecnologias
invisíveis. Se se pensava arquivado o
projeto de base de lançamentos de foguetes espaciais, no Maranhão, o novo
governo federal entrega, de mãos beijadas, um pedaço do Brasil aos norte-americanos.
Aqui não se trata de saudosismo
inconsequente, nem se cuida de choramingo nostálgico, mas de um grito de alerta
a quantos ainda resistem às tentações monetárias esgotáveis e aos encantos das
promessas dependentes de vontade política de governantes transitórios. O Brasil
não pode ser um país meramente urbano, porque as cidades incham e demandam
alimentos, e estes não se retiram de plantios de soja em campos extensos, que
se perdem no olhar distante do observador indignado.
É nesse contexto que ouso afirmar,
convictamente, que a soja limpa e suja. Limpa, porque provoca o desmatamento de
nossas chapadas; e suja, porque promove o desmonte da agricultura familiar
tradicional, além do que o processo de aliciamento para a aquisição de áreas de
acréscimos baseia-se em premissas enganosas, na medida em que transfere para os
governantes de todos os níveis, a responsabilidade, já instituída, pela
devolução dos tributos arrecadados em forma de benefícios sociais que, quase
sempre, não aparecem. Substitui-se a agricultura familiar pela monocultura
lucrativa de poucos, modificando o cenário sertanejo de luares perdidos, na
canção de Catulo da Paixão Cearense. Essa transformação tópica transparece um
quadro de irreversibilidade lastimável, que será agravado se as promessas de
progresso social não forem cumpridas. Só restarão resmungos de lamentação
tardia, enquanto as gerações vindouras amargarão o desalento na vida urbana, à
míngua de perspectivas animadoras. Oxalá que não!
SOBRE O AUTOR
BENEDITO
FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de
1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos
em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à
universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão
(1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito
Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás
(1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004).
Tem experiência na área de Direito, com ênfase
em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito
agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios
constitucionais.
NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso
de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira
de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior
foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que,
de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás.
Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras
bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais,
trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12
livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”,
“Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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