Comentário teórico sobre o
princípio da presunção de inocência.
“CADA CABEÇA UMA SENTENÇA”
*Por Benedito Marques
Quem
costuma assistir a jogos de futebol pela TV já deve ter visto e ouvido o
seguinte diálogo:
- Foi pênalti,
Arnaldo?
-Não.
- Mas o zagueiro
derrubou o atacante dentro da área!
- Mas não teve
intenção... a regra é clara.
É
difícil compreender como um comentarista pode aferir a intenção do jogador. É como um juiz que
julga por ilação, por intuição, por presunção, na base do “não é, mas era para ser”.
Para
o melhor entendimento dessa introdução, considero cabível uma incursão – ainda
que perfunctória –,
na teoria jurídica, na direção do que se convencionou chamar sistema normativo, pois me dirijo a
juristas e leigos.
Como
a própria expressão “sistema normativo” indica, consiste no sistema de normas.
Estas compõem-se de princípios e de regras. Os princípios são imutáveis,
enquanto as regras – que são as leis elaboradas pelo Poder Legislativo dos
entes Federados (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) –, podem ser mudadas a
qualquer tempo, a depender das circunstâncias históricas, econômicas, políticos
e sociais. Quase sempre, as regras se baseiam em princípios, e, não raro, os
princípios estão embutidos em regras, ou seja, em leis, aí incluída a própria
Constituição Federal, que é a Lei Maior do nosso País.
No
caso, o conhecido comentarista de arbitragem fundamentava o seu convencimento
de que não configurava pênalti em cima de uma “regra”, é dizer, regra de futebol,
portanto, sujeita a mudanças, como vem ocorrendo depois da última Copa do Mundo
com a utilização do já famoso VAR (câmara de vídeo), para afastar dúvidas sobre
lances duvidosos. O que se busca, na hipótese, é a justiça na contenda
esportiva, quase sempre obnubilada pela paixão clubista.
Pois
bem. Se a regra pode ser interpretada por variadas percepções, a depender do
intérprete, há que se ter em linha de consideração que a interpretação traz, em
sua gênese, uma forte dose de
subjetivismo, que tanto pode advir do sentimento,
como do pensamento. Emoção e
raciocínio, portanto, misturam-se no ato de interpretar, podendo interferir no
julgamento de um fato qualquer. Se assim não fosse, não teria sentido a máxima:
“Cada cabeça uma sentença”, expressão popularmente conhecida.
Com
esse enredo, vem à tona o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) a
respeito da pertinência do início do cumprimento de uma pena de prisão,
decorrente de uma sentença condenatória em processo criminal. O entendimento
que agora está prevalecendo é o de que a pena comece a ser cumprida, a partir
de quando a sentença for confirmada por um órgão colegiado, ou seja, a chamada
segunda instância. O ex-Presidente Lula, por exemplo, foi apanhado por esse
entendimento, em votação apertada de 6 a 5, em 2016, sendo que uma das
Ministras ressaltou,
em seu voto, que estava votando a favor desse entendimento, em respeito ao
“princípio da colegialidade”, mas “resguardava a sua compreensão pessoal”. Em
outras palavras, quis dizer que acompanhava a chamada “maioria”. Não tivesse
respeitado tal princípio, a maioria seria outra e noutro sentido, e o resultado
teria sido diferente.
Esse
comentário vem a propósito do adiamento do julgamento de uma Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), que tinha sido pautado em dezembro do ano passado
(2018) pelo atual Presidente da Corte Suprema de Justiça do Brasil. Segundo se
informa, esse adiamento teria sido provocado a pedido do Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para estudos. Como advogado de mais de 51
anos, e como professor de Direito por 33 anos, causou-me estranheza essa
informação. Estudos? Verdade ou não, o julgamento foi adiado e,
particularmente, ainda não sei para quando.
Há
quem acredite que, se o STF voltar a admitir – como admitia antes de 2016 –, que a sentença
condenatória somente se inicie depois do julgamento do último recurso cabível,
o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva estaria solto. Convictamente não
recomendo essa ilusão aos que consideram inconstitucional o encarceramento
iniciado no dia 7 de abril do ano passado. Não me parece um corolário pacífico.
E por que não?
É
na direção de uma resposta racional que este comentário se encaminha, baseado
justamente na temática escolhida pelo título do texto: “Cada cabeça uma sentença”.
Com
efeito, quem acompanha a mídia sabe que o ex-Presidente tem recurso a ser
apreciado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e que uma segunda sentença
condenatória já foi proferida na Justiça Federal do Paraná, contra a qual já se
informa que também já foi interposto recurso. Ninguém, de sã consciência, pode
afirmar que o STJ e o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, onde
dormitam esses recursos, ao julgarem esses recursos, ali na espera de pauta, vão
manter as decisões recorridas, modificá-las ou até mesmo absolver o condenado.
E tudo isso porque cada juiz tem suas próprias convicções, para o bem ou para o
mal, mas em nome da Justiça, que se constitui o apanágio do chamado Estado
Democrático do Direito, ou, numa palavra só, DEMOCRACIA. É esperar para ver.
Nessa
toada, imagino que interessa a todos os brasileiros, na atual conjuntura, uma
base teórica minimamente esclarecedora sobre o significado da expressão
pronunciada em todos os cantos: presunção de inocência.
Cada
pessoa tem um juízo, e cada juiz tem um pensar jurídico para decidir causas e
dirimir conflitos. A meu juízo, na linha do que foi posto na parte introdutória
deste comentário, a presunção de
inocência está abrigada numa regra,
com respaldo em um princípio. A regra
é: “ninguém
poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal
condenatória”.
O princípio, à sua vez – também a meu juízo –, está albergado logo no primeiro
artigo da chamada “Constituição Cidadã”, com as palavras seguintes:
.
“A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito
e tem como fundamentos...a dignidade da pessoa humana”.
Os
preceitos constitucionais acima transcritos permitem a interpretação de que a
regra que não considera culpado aquele que ainda aguarda julgamento de recursos
pendentes consubstancia a presunção da
inocência de que tanto se fala, porque uma decisão somente transita
definitivamente em julgado, quando não existe mais nenhum recurso a ser
interposto e apreciado. A alocução “trânsito em julgado” não pode ter outro
sentido, na mais lúcida
interpretação, até por leigos em conhecimentos jurídicos.
Também
sustento – respeitando quem pense diferentemente –, que a presunção de inocência deita raízes no ventre do princípio
da dignidade da pessoa humana, realçado no começo da Constituição, sob
o qual se apoia a República Federativa do Brasil. E mais que isso: o direito de
recorrer tem abrigo seguro nos princípios do contraditório e da ampla
defesa, igualmente assegurados na Lei Maior do País.
A
despeito da linguagem literal dos ditames
legais,
acima comentados, o Supremo Tribunal Federal ainda está dividido, como já se
dividiu em tantos outros casos. Imagine-se o que ocorre nos outros Tribunais e,
agora, até a OAB precisa aprofundar estudos sobre essa matéria, adiando a
definição da controvérsia que interessa a incontáveis presos que abarrotam os presídios,
com ou sem culpa. Mas o discurso proclamado é o de que “a lei está acima de todos”.
Tudo
bem; não discordo, mas ficaria devendo aos que acessarem esta coluna, se não
registrasse recentes fatos que envolveram decisões díspares de juízes de diferentes
níveis na magistratura brasileira, a respeito de uma regra contida na chamada “Lei de Execuções Penais”, que assegura
direito a presidiários de comparecerem a funerais de parentes próximos
(cônjuges, irmãos e neto, por exemplo). Segundo me consta, a regra, ou melhor,
a “lei”, condiciona apenas que o deslocamento do preso se dê sob escolta. Mas,
como divulgou a mídia, em caso concreto de interesse do ex-Presidente Lula,
essa regra foi distorcida e, num primeiro momento, negado esse direito, depois recomposto pela maior autoridade do
Poder Judiciário brasileiro.
Então
se pergunta: por que ocorrem decisões díspares? A lei é o direito? O direito é
a lei em si mesma? Para mim, a lei confere o direito em determinadas
circunstâncias, em determinados lugares e em certos contextos históricos. A PEC
da ambicionada “Reforma da Previdência” está aí para quem quiser discutir a
mudança. O que não se pode mudar são os princípios, e o que preside o direito
aqui comentado (efemeramente desconsiderado – diga-se uma vez mais) é o princípio da dignidade da pessoa humana. Lastimavelmente,
há quem não queira, sequer, ouvir essa expressão!
Para concluir o tema que me propus abordar,
ainda formulo duas indagações que permeiam essa análise e que nos remetem a
pertinentes reflexões: Quanto vale um
minuto de privação de liberdade, se se constatar que a condenação emerge de um
erro judiciário? Há preço para essa
reparação?
Não se ignora que erros judiciários já
ocorreram no passado, como o histórico caso dos “Irmãos Naves”, em Minas
Gerais, no século passado, que rendeu até filme. Não se ignora, outrossim, o
triste caso ocorrido por volta de 1852, quando D. Pedro II negou indulgência a
um condenado à morte por enforcamento – que existia na legislação daquela época
–, e, depois de morto e sepultado o condenado (famoso “Caso Coqueiro”), sua
inocência foi reconhecida, com a confissão arrependida de sua própria viúva.
Ao fim e ao cabo, o brocardo que dá título a
este texto tem sua pertinência na atual quadra da História brasileira, porque,
em verdade, cada cabeça tem um juízo; cada juiz tem uma cabeça; e “cada cabeça
uma sentença”.
SOBRE O AUTOR
BENEDITO FERREIRA MARQUES nasceu no dia 11 de novembro de 1939, no povoado Barro Branco, no município de Buriti/MA. Começou seus estudos em escola pública e, com dedicação, foi galgando os degraus que o levariam à universidade. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1964), especialista em Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial; mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (1988); e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004).
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial, atuando principalmente nos seguintes temas: direito agrário, reforma agrária, função social, contratos agrários e princípios constitucionais.
NA Universidade Federal de Goiás, foi Vice-reitor, Coordenador do Curso de Mestrado em Direito Agrário e Diretor da Faculdade de Direito. Na Carreira de magistério, foi professor de Português no Ensino Médio; no Ensino Superior foi professor de Direito Civil, Direito Agrário e Direito Comercial, sendo que, de 1976 a 1984, foi professor de Direito Civil na PUC de Goiás.
Acompanhou pesquisas, participou de inúmeras bancas examinadoras de mestrado, autor de muitos artigos, textos em jornais, trabalhos publicados em anais de congressos, além de já ter publicado 12 livros, entre eles “A Guerra da Balaiada, à luz do direito”, “Marcas do Passado”, “Direito Agrário para Concursos”; e “Cambica de Buriti”; entre outros.
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