Por Guilherme Espíndola Kuhn/Publicado por Canal Ciências
Criminais
Aconteceu comigo. Não faz muito
tempo. Eu era estagiário num brilhante escritório de advocacia, composto por
profissionais extremamente responsáveis e competentes.
Um cliente, investigado pela
prática de suposta infração penal, havia sido intimado para comparecer numa
determinada Delegacia de Polícia num pequeno Município do Estado do Rio Grande do Sul.
Como eu sempre fui do penal, fui
convidado para acompanhar o ato. De terno, gravata, óculos de sol e cuia de
mate na mão - naquela marra típica que só os estagiários sabem ter -, adentrei
na Delegacia de Polícia, ao lado de uma grande advogada e do investigado.
Fomos incrivelmente bem
atendidos pelos servidores. Não demorou muito tempo para o Delegado de Polícia
aparecer e dizer: Oh! Os dois!? Ao que respondi, de imediato e com veemência:
os dois!
Ora, pensei que ele estava
fazendo referência aos dois membros do escritório de advocacia que estavam
acompanhando o ato… Ledo engano!
Entramos numa pequena sala. Ao
meu lado esquerdo estava sentado o suspeito e, ao lado dele, a advogada. Na
sala, ainda, se encontrava uma atenciosa e educada servidora policial.
Depois de alguns instantes, o
Delegado de Polícia apareceu e, sem cientificar o investigado de seus direitos
constitucionais, passou a bradar que o caso era muito grave e que “deveriam
abrir o bico”. (sic)
Logicamente, antes de mais
nada, foi formulado o requerimento de prévio acesso aos autos do Inquérito
Policial. Aliás, dos Inquéritos Policiais, haja vista que, malandramente, houve
a ramificação de um só IP em diversos, com o claro objetivo de esconder
documentos e depoimentos da defesa.
Não obstante, o Delegado de
Polícia, sem garantir ainda o acesso ao (desfalcado, já que faltavam documentos
e depoimentos) expediente investigativo e, muito menos, sem cientificar o
investigado de seus direitos basilares, continuou a empregar o seu temerário
método de investigação: olhou para o investigado e, pasmem, Senhoras e
Senhores, para mim - o estagiário!!!! -, e disse: eu quero é saber se vocês vão
falar; porque, vocês sabem, eu já pedi a prisão de vocês!
Pronto, pensei! Ser estagiário
agora é crime! Direito Penal do Autor: os estagiários, além de serem
escravizados e não valerem nada, são também os inimigos agora!
Não, caros leitores.
Absurdamente o Delegado não sabia, não conhecia, não tinha noção de quem ele
estava investigando. Ele me confundiu - o mísero e marrento estagiário (na
época)! - com o outro investigado, que seria interrogado naquele fatídico dia
também.
E detalhe: o outro investigado
não apresentava nenhuma semelhança comigo. Sou alto e magro. Ele, por sua vez,
era baixinho e gordinho.
Novamente pensei (em silêncio):
imagina a qualidade da investigação se a autoridade policial não conhece sequer
quem está investigando…
O verdadeiro investigado ali
presente, apesar de toda essa confusão, estava em choque, assustado: o Delegado
prometia a sua prisão acaso não fosse confirmado aquilo que a autoridade
policial queria ouvir (e que não necessariamente corresponde à realidade).
Com o IP em mãos, mostrei ao
investigado que a juíza já havia negado a sua prisão e que tudo não passava de
blefe.
Agora, não é preciso continuar
discorrendo muito sobre aquele fatídico dia para perceber a precariedade das
investigações policiais no Brasil:
1. Investiga-se mesmo sem
saber quem se está investigando;
2. Ameaçasse de prisão,
quando esta já foi negada, para que o investigado, que não é conhecido, diga
aquilo que a autoridade quer ouvir. Vale dizer: não existe a preocupação de
escutar a versão do investigado, de analisar outras hipóteses, enfim, de
esclarecer verdadeiramente o fato;
3. O tom da entrevista
realizado pelo (s) Delegado (s), aos gritos, mediante argumentos de autoridade
e blefes de prisão, é suscetível de sugestionar e de induzir qualquer pessoa a
se incriminar, confessando o que não fez ou mais do que fez;
4. Este método de
investigação é manifestamente temerário, afinal, não são raros os casos em que
a autoridade policial costuma empregá-lo com vítimas ou testemunhas,
induzindo-as a reconhecerem o investigado.
Dito de outro modo, não existe
a preocupação de ouvir, de verdadeiramente escutar, as pessoas. A Autoridade
Policial busca confirmar aquilo que ela deseja.
É o famoso primado das
hipóteses sobre os fatos, tão denunciando por Aury LOPES JR. (2013): no
Brasil, primeiro se decide para depois se investigar; quando, por óbvio, o
procedimento deveria ser o inverso!
Não são poucas as vítimas e
testemunhas que reconhecem um sujeito equivocadamente, não raras vezes porque a
polícia apresentou a elas aquele célebre book fotográfico de velhos conhecidos
do sistema policial, asseverando que eles são perigosos, que têm antecedentes e
que só pode ter sido um deles - dos apresentados nas fotografias - o autor do
delito.
Igualmente, costuma-se primeiro
apresentar um book fotográfico de suspeitos e, depois, realizar o
reconhecimento pessoal de alguns deles. E qual o problema disso?
Bem… o reconhecimento pessoal
fica completamente contaminado, afinal, fora lançado sobre as vítimas e
testemunhas um estereótipo, uma imagem, um padrão de delinquente, criado pela
autoridade policial, de maneira que aquele que apresentar semelhanças com
alguns dos suspeitos mostrados nas fotografias tende a ser reconhecido.
5. Se este método
investigativo foi empreendido contra um suspeito acompanhado por uma advogada e
por um estagiário, imaginem o que não acontece nas Delegacias de Polícia deste
nosso grande país, principalmente quando os suspeitos não são acompanhados por
advogados?
Moral da história: quantos
“estagiários” não se encontram cumprindo pena indevidamente por aí? Afinal, são
todos culpados. Por quê? Porque não confirmaram o que a autoridade gostaria de
escutar…!
0 COMENTÁRIOS:
Postar um comentário
O comentário não representa a opinião do blog; a responsabilidade é do autor da mensagem. Ofensas pessoais, mensagens preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, ou ainda acusações levianas não serão aceitas. O objetivo do painel de comentários é promover o debate mais livre possível, respeitando o mínimo de bom senso e civilidade. O Redator-Chefe deste CORREIO poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema proposto.