Abro
aleatoriamente o portal da Secretaria De Assuntos Penitenciários de São Paulo,
passo por dez, dentre as oitenta e três penitenciárias. Passo por outras mais e
mais algumas constatando que, na média, estão com o dobro ou quase de
superlotação.
Não somei quantas
pessoas estão presas no estado, mas, certamente, estamos centenas de milhares
de seres humanos, privados de liberdade, por ordem escrita de autoridade
judiciária competente. O déficit nacional está em torno de 230.000 vagas. Em
termos mais crus, são 230.000 pessoas que dormem amarradas às próprias mãos,
dormem com a cara no que seria o vaso sanitário, dormem no chão, entre ratos.
Está a cada dia mais
fácil prender alguém. Há consagrados clichês, nem são necessários muitos,
convertidos em jurisprudência dominante, para que
qualquer carimbo com mais de cinco palavras sirva para a privação de liberdade,
antes do trânsito em julgado (ou, ainda, antecipadamente, antes de uma decisão
colegiada) da sentença penal condenatória.
Dois policiais
militares. Nada mais do que dois policiais militares, ou, apenas um, basta para
que a máquina de prender gente comece a funcionar. Essa máquina é ligada no
calor das ruas: jovens – preferentemente, negros e certamente pobres – são
abordados por policiais militares, por atitude suspeita;
assim entendido acelerar o passo, quando se vê a viatura ou entrar em uma casa
(pode ser até a casa onde moram), enfim, por qualquer quebra expectativa, seja
pelo comportamento exteriorizado e julgado, seja pelo local em que se
encontram.
Um jovem negro, caminhando em um
bairro branco rico, já pode ser observado pela polícia, pode ser expulso do
bairro por vigilantes particulares, forma moderna de jagunço; dois jovens negros serão abordados, mãos na cabeça
e são suspeitos de alguma coisa; três jovens negros, já não há suspeita, mas certeza
antecipada de culpa: esses serão parados, submetidos a busca pessoal e levados
ao distrito, para que expliquem o que faziam por lá. Sempre ocorre de um dos
policiais dizer ter encontrado com um deles uma pequena porção de droga, seja a
droga que for.
Eram três, se a droga
estava com um deles, um por todos e todos por um, a droga pertence a todos.
Decerto não iriam usá-la tão somente, não mais havendo dúvidas de que são
traficantes. São presos, não pela prática de um fato típico, mas por um juízo
moral, calcado em velhos estereótipos. Está fechado o círculo condenatório e
todos os agentes públicos estão certos que não há qualquer possibilidade de
defesa a esses jovens. Se não lhes resta defesa, não haverá possibilidade de
absolvição.
O promotor os
denunciará e não raro fará constar do corpo de denúncia de que se tratavam de
pessoas sem ocupação laboral lícita, nenhum deles possuindo qualquer razão para ali estar, o que torna claro que se
associaram para fins de tráfico. O tráfico, todos sabem, ao lado da corrupção é
crime que mais atinge a paz social. Ele acredita religiosamente na palavra dos
policiais, nada questionando. Qualquer pedido de liberdade é negado, em face dos veementes indícios de autoria (a
palavra dos dois policiais), sendo pedida a prisão preventiva do grupo,
pela necessidade de resguardar o interesse público, abalado pela
prática do crime, e, ainda, para proteger a população ordeira e honesta, sendo,
ademais, dever do juiz impedir a fuga do acusados, que nada puderam alegar em
seu favor. É um clichê.
O processo se torna
inquisitorial e farsesco, eis que a palavra dos policiais será aceita sem
reservas ou questionamentos por todos os julgadores que por passarem pelo
processo, desde o juiz até os desembargadores. Não há mais qualquer
possibilidade de contraditório e a pergunta que se fará aos réus inverte
totalmente os valores processuais, uma vez que deverão os acusados provar que
aqueles policiais teriam algum interesse em prejudicá-los. Como essa é uma
prova impossível, a palavra dos policiais vira o mote principal do julgamento.
Todos creem no depoimento dos policiais, que será sempre
considerados harmônicos e coerentes.
Tudo porque se aceita
que vivemos sob uma guerra, A Guerra Contra O Crime,
em que o mais importante é destruir o inimigo, disfarçado de cidadão comum. Ter
onde colocá-lo com dignidade é outro assunto e não pode competir com a
necessidade de se prenderem os criminosos, acabar com a impunidade, deixar a
cidade livre para a sociedade ordeira e pagadora de
impostos.
Tudo raso, pré-moldado,
fácil, pronto em cada computador. Diante de alguma inconveniência, basta dizer
que a superlotação carcerária não é problema dos juízes. Ou, ainda mais, em
outro clichê, que a mera superlotação carcerária não é razão
para concessão de liberdade para o réu. Mera lotação
carcerária… Do lado de lá, gritam os promotores/procuradores que nada sobreleva
a necessidade de combate ao crime organizado. Novo clichê, bastaria que não cometessem crimes, como me disse um
proeminente procurador de justiça, responsabilizando o preso pela superlotação
da cadeia onde se encontra.
A partir desse
entendimento, dessa cultura punitivista, que alimenta egos e lota prisões,
quebra-se finalmente o mais basilar dos conceitos: o da igualdade humana. Sim,
todos acreditam e dizem-no sem pudor que eles (forma
usual de referir-se ao preso) devem ser presos, trancafiados e tudo o que se
aprendeu e o que se escreveu sobre prisão e dignidade humana é rasgado e
desmoralizado.
As prisões se entopem
de atitudes suspeitas. Estamos firmes, somos a
quarta população carcerária do globo terrestre e prendemos 7,3 vezes mais que
média mundial. Vamos ser os primeirões, em breve.
A primeira consequência
é que o padrão de dignidade e autoestima descem a níveis negativos,
transformando diretores de presídio em síndicos do inferno e os juízes em
carcereiros de luxo, que nada mais fazem do que dificultar, no limite de suas
forças, que alguém seja posto em liberdade. Se ocorrer de um juiz,
isoladamente, acordar para isso, tornar-se garantista (uma
espécie de falha no DNA de quem julga), sua desmoralização será certa e
ele será apontado como alguém pertencente à rede do crime organizado. Seu
crime: ter compaixão pelo próximo, fato típico, hediondo.
O vulcão da miséria
estará sempre prestes a explodir. Facções criminosas são meras consequências,
plantas daninhas nascidas no chão duro das dignidades negadas na prisão,
regadas com nossa política assassina de combate ao uso de drogas.
Gente com doenças
graves se amontoa, gente com tuberculose se amontoa, gente sem condenação se
amontoa, gente que vai enlouquecendo um pouco por dia se amontoa até que, até
que todos se transformam em feras e se devoram, sob o olhar passivo e
ligeiramente feliz das forças de segurança, ou, sob tiros das forças de
segurança, que matam muito mais do que qualquer outra doença no país.
Nessa falsa guerra,
qualquer afirmativa em favor de direitos humanos é considerada um gesto de
apoio ao crime organizado, falar em dignidade humana se tornou coisa de quem quer ver o país afundado na impunidade e na corrupção.
Aqueles dois rapazes
não terão chance alguma. Os policiais disseram que eles lhes confidenciaram que
eram traficantes. Ponto final da história, eles serão condenados e atirados ao
sistema prisional, de onde, com sorte, sairão vivos. Por milagre, sairão sãos.
* Por
ROBERTO TARDELLI, advogado e promotor de Justiça
aposentado.