Cresce a intolerância nas redes sociais, onde proliferam os “idiotas da
aldeia” do escritor Umberto Eco. Como torná-las mais democráticas?
*Publicado por Elane Souza Advocacia & Consultoria Jurídica
em www.jusbrasil.com.br
Parece um duelo do Velho Oeste. No lugar da arma, é
o dedo no mouse ou na tela docelular. Navegamos pelas redes
sociais como se estivéssemos num filme de bangue-bangue. Aguardamos o
adversário chegar armado para nos surpreender. Ao sinal de ameaça, “pá!”, ou
melhor, “clique!”. Assim, compartilhamos textos esdrúxulos sem ler porque o
título é provocativo. Distribuímos fotomontagens malfeitas achando que são
imagens reais. Assinamos petições on-line sem saber do que se
trata. “É golpe militar? Achei que fosse impeachment.” Quem veste
camisa da Seleção Brasileira e vai para a rua é “coxinha”. Quem bate panela em
discurso de político é“reaça”. E quem não bate? “Petralha”.
Queremos protestar contra os religiosos intolerantes. O que fazemos? Enchemos
uma rede social voltada ao público evangélico de filmes pornôs. Destruímos
relacionamentos que levaram anos para ser construídos só por causa de um
“curtir” ou de um “compartilhar”. E talvez não estejamos nos dando conta disso.
Lá se vai uma década em que as redes sociais
passaram a fazer parte de nossas vidas. Em muitos aspectos, elas trouxeram
coisas positivas. Sites como Facebook eTwitter aproximaram
pessoas que jamais se encontrariam nos tempos off-line. Também serviram de base
para novos negócios. Tornaram nosso trabalho mais produtivo (o. K., nem todos
os trabalhos). Mas o efeito colateral é evidente a qualquer um que frequente um
desses botecos virtuais: estamos diante da “era da grosseria”. Em algum momento
dos últimos anos, grupos na internet voltaram a se comportar
como uma horda de visigodos com ímpeto para exterminar adversários em
potencial. É a era da polarização, do pensamento binário: ou pensas como eu ou
te tornas um inimigo. Se é a favor do PSDB, você automaticamente é
contra as ciclovias, a favor da redução da maioridade penal e quer o
impeachment da presidente. Se simpatiza com o PT, defende a corrupção e o
aparelhamento do Estado. Nesse mundo em preto e branco, não há espaço
para os tons de cinza.
Esses chatos não são a maioria dos que usam as
redes sociais, mas acabam sendo a parcela que mais chama a atenção. São os “idiotas
da aldeia”, como descreveu o escritor e filósofo italiano Umberto Eco ao
receber o título de doutor honoris causaem comunicação e cultura na
Universidade de Turim, no último mês de junho. “As redes sociais deram
voz a uma legião de imbecis”, disse. “Antes, eles falavam apenas em um bar,
depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Agora, têm o mesmo
direito à palavra de um prêmio Nobel.”
Muitos criticaram a opinião de Eco. Lembraram que talvez a grande
contribuição da internet foi ter dado oportunidade a pessoas comuns de ter o
mesmo espaço que um prêmio Nobel. Eco justificou-se, depois das críticas,
dizendo que se referia a um pequeno e barulhento grupo de chatos que se sobrepunham
à maioria. É importante ressaltar que apenas publicar opiniões não faz das
redes um espaço democrático. Democracia também pressupõe o debate de ideias,
que não costuma ocorrer no Facebook.
Além disso, a impressão de Eco faz sentido na medida em que as redes
sociais não são, há muito tempo, uma plataforma em que as informações transitam
de forma isonômica. Algumas coisas chamam mais a atenção que outras. Os sites
tendem a priorizar essas informações para poder ter mais audiência e, assim,
gerar mais receita com publicidade. Pessoas com comportamento mais agressivo,
independentemente de seu viés político e religioso, repercutem mais. Pode
existir a impressão de que elas são a maioria. “As redes sociais
privilegiam aquilo que é considerado socialmente relevante, que vai gerar
comentários e interação”, diz Raquel Recuero, professora da Universidade
Católica de Pelotas, Rio Grande do Sul. “Temas polêmicos tendem a gerar
debate e brigas dentro da mesma rede, e isso pode produzir comentários
agressivos”, diz.
O grande motor dessa forma mais recente de como a informação trafega no
mundo é o Facebook. O site tem quase 1,5 bilhão de usuários cadastrados. Um
bilhão o acessa diariamente. No Brasil, oito em cada dez internautas têm uma
conta no “Feice”. São cerca de 90 milhões de brasileiros que acessam as redes
especialmente pelo telefone celular, segundo dados da consultoria eMarketer. A
forma de organizar todo o conteúdo publicado por essa massa de usuários foi a
criação de um algoritmo, uma fórmula para distribuir as postagens entre os
usuários. Ele aprende com a rotina on-line do usuário que tipo de conteúdo ele
mais acessa. Esse algoritmo recebeu o nome de News Feed. A justificativa do
Facebook é que seria impossível para uma pessoa acompanhar tudo o que seus amigos
publicam. Diariamente, nossos contatos postam em média 1.500 conteúdos. Mas o
Facebook os filtra para nós. Só recebemos cerca de 300 deles. O resto nunca
veremos.
O aprendizado do algoritmo é baseado em fatores óbvios, como o grau de
proximidade que você tem com a pessoa que publicou o conteúdo e o tipo de
conteúdo que você mais gosta. Se você clica mais em fotos que em vídeos, o
Facebook vai mostrar mais amigos que publicaram fotos. Há também fatores menos
óbvios, como a infraestrutura de acesso. Se a rede de seu celular está ruim,
seu perfil passa a priorizar textos e fotos no lugar de vídeos mais pesados,
que consomem mais conexão. Se alguém comenta “Parabéns” numa publicação, é
provável que ela se trate de alguma celebração. Como isso gera muitas “curtidas”,
o Facebook tende a promover o post. As páginas que você curte também são
levadas em consideração pelo algoritmo. Posts de perfis que pagam ao Facebook
também têm mais chance de chegar a você. E aqui vem o ponto central para a “era
da grosseria”: se a comunidade tem uma determinada visão política ou
ideológica, é provável que você tenha contato com mais publicações relacionadas
ao tema.
O problema, segundo especialistas, é que essa obsessão por oferecer ao
usuário apenas o que ele quer clicar tende a criar ilhas de opiniões. As
pessoas têm a falsa sensação de que o mundo inteiro pensa como elas, já que o
algoritmo não as confronta com outras ideias. Como efeito colateral
subsequente, passam a publicar conteúdos que seriam aceitos num determinado grupo,
e não pelo público em geral. É o que a pesquisadora americana Danah Boyd,
fundadora do Data & Society Research Institute, chama de audiências
invisíveis. No mundo off-line, você costuma ajustar o tom de seu discurso de
acordo com a audiência. No mundo on-line, você acha que sabe com que audiência
está falando. Mas alguém que não faça parte desse grupo pode ter acesso àquele
conteúdo, interpretá-lo de uma forma diferente e expor a uma situação de
conflito. É um caso comum em discussões sobre política. O comentário de uma
pessoa com uma visão mais à esquerda pode receber diversas curtidas em seu
hábitat no algoritmo. Mas, se um amigo mais à direita compartilha a mesma
opinião em sua página, chovem críticas e ironias. De um lado, os histéricos de
esquerda, que fantasiam, de forma delirante, um novo golpe militar no Brasil.
De outro, os histéricos de direita, com seu indefectível bordão: “Vá
para Cuba!”.
Não é só o Facebook que usa um algoritmo desse
tipo. Google, Twitter, Amazon,Uber e
outras empresas de tecnologiadesenvolveram sistemas com o objetivo
de facilitar a vida do usuário numa ponta e gerar mais receita na outra. Mas
ela se torna um problema quando as pessoas não sabem que estão tendo acesso a
um conteúdo enviesado. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos pela
pesquisadora Karrie Karahalios, da Universidade de Illinois, mostrou que 62%
dos americanos que usavam o Facebook não sabiam da existência de filtros pelo
algoritmo. “Recebi uma série de respostas viscerais quando expliquei para as
pessoas como o algoritmo do Facebook funcionava”, disse Karrie, numa
entrevista para a revista Time. “Algumas passaram cinco
minutos em choque, pensando sobre aquilo.”
Há pouco mais de um ano, o Facebook divulgou um
estudo realizado em 2012 com 700 mil usuários que tinha como objetivo entender
como funcionavam as reações emocionais das pessoas na internet. Para isso, a
companhia manipulou as páginas de metade deles com notícias e comentários positivos
dos contatos. Os outros 350 mil receberam notícias e comentários mais tristes.
A ideia de entender como as emoções contagiavam os usuários virou um escândalo.
O cientista americano Jaron Lanier, em artigo publicado no jornal The
New York Times, se lembrou dos riscos envolvidos. “A manipulação
das emoções não é algo pequeno. Cerca de 60% dos suicídios são precedidos de
algum tipo de distúrbio de humor”, escreveu. Com a repercussão
negativa, Sheryl Sandberg, braço direito de Mark Zuckerberg,
pediu desculpas. Desde então, o Facebook criou políticas mais transparentes
para seu algoritmo. Além da ferramenta “Deixar de seguir”, que já
existia e dava mais controle ao que o usuário acessa em sua página, a empresa
implementou o “Veja primeiro”, em que o usuário pode
selecionar um grupo de amigos para acompanhar com prioridade.
Não há um consenso sobre a relação de causa-efeito entre a tecnologia
usada pelas redes sociais e uma eventual mudança de comportamento de seus
usuários. Nas últimas semanas, ÉPOCA conversou com uma dezena de especialistas
em comportamento, sociólogos e estudiosos da internet, e a maioria acredita que
os algoritmos são apenas uma ferramenta na mão de uma sociedade que há tempos
carece de ponderação na discussão de ideias. Leonardo Lazarte, professor de
internet e sociedade na Universidade de Brasília (UnB), lembra que o ambiente
em algumas dessas comunidades nas redes sociais é muito semelhante ao visto em
gangues. A pessoa entra no grupo e precisa passar por provas para ganhar a
confiança dos outros. “A diferença é que isso é amplificado no mundo
virtual”, diz.
De acordo com dados da SaferNet, ONG dedicada à
defesa de direitos na internet, o Facebook domina hoje quase 50% das denúncias
de páginas e perfis dedicados ao ódio e à intolerância. Entre 2013 e 2014, o
número de denúncias de páginas e perfis no Facebook saltou de 16.600 para
26.800. Os destaques negativos ficaram para asdenúncias relacionadas
a racismo (de 6.800 para 12 mil denúncias) e xenofobia (de 336 para 4.500).
Segundo Rodrigo Nejm, diretor da SaferNet, o número reflete também a existência
de novos canais para registrar os crimes. “O discurso de ódio sempre
existiu, mas é um novo ambiente social. Isso reflete a postura das pessoas
usando essas ferramentas”, diz. “É fundamental que as pessoas
tenham noções de cidadania desde os primeiros cliques. Também é preciso
incorporar políticas públicas para tratar de direitos humanos e liberdade de
expressão.” O Facebook diz que criou mecanismos para receber denúncias
de ódio, racismo e intolerância. “Queremos promover uma plataforma
livre, aberta e segura para as pessoas”, diz Bruno Magrani, diretor de
políticas públicas do Facebook Brasil. Falta pensar em algo que promova o
debate de ideias que caracteriza um espaço genuinamente democrático.
O Brasil sofre de um problema crônico de educação
virtual. Somos imaturos. A sensação de segurança mistura-se a uma falsa
ideia sobre a liberdade de expressão. Sérgio Ferreira do Amaral, professor do
Departamento de Ciências Sociais na Educação da Unicamp, explica que a ideia de
estar livre para disseminar comentários maldosos acontece porque a pessoa
acredita que não será encontrada, já que a internet é uma plataforma recente.
Além disso, a sociedade precisa aprender a se
reorganizar em rede. Para o cientista social Marco Aurélio Nogueira, da
Universidade de São Paulo, a internet se popularizou em meio ao enfraquecimento
de instituições que tradicionalmente ajudavam a organizar comunidades. A
escola, a igreja, a família, os sindicatos e os partidos estão perdendo a
influência. As pessoas estão buscando as respostas na internet. “A cultura
brasileira, tradicionalmente, nunca incorporou o conflito e a divergência, algo
inerente ao ambiente de internet”, diz Nogueira. “A cultura de rede ainda não
se fixou em termos éticos na vida brasileira. Não temos uma cultura de boas maneiras.
A gente nem sequer sabe o que queremos da vida em rede.” Precisamos repensar o
papel social das redes sociais. Caso contrário, a internet, que cresceu e se
desenvolveu como uma poderosa ferramenta democrática, corre o risco de
alimentar o ódio, a intolerância e o autoritarismo.
Fonte: épocaGlobo na íntegra
Figura/Créditos: época. Globo
Elane Souza Advocacia & Consultoria Jurídica:Advogada em Recife-PE e Caucaia-CE "part time",
além disso, uma eterna estudante do Direito. Atuante nas áreas de Direito
Administrativo,, Família , Penal e Consumidor preferencialmente). site: Http://endireitandoasideias.blogspot.com.br/