*Por Tereza Cruvinel
Dez
anos depois do mensalão, o país ficou melhor por outras razões, mas a
desmoralização da atividade política não fez bem à democracia nem à sociedade.
O
país ficou melhor principalmente porque Lula, apesar dos esforços para
arrastá-lo para o escândalo e de todos os açoites que sofreu, conseguiu
reeleger-se em 2006. No segundo mandato deu impulso à política de crescimento
econômico (ajudado pelo cenário externo, é verdade) e de distribuição de renda,
consolidando o lulismo como uma etapa transformadora. Agora mesmo, lá na
Itália, foi chamado a falar disso: de um modelo que, sem tomar dos mais ricos,
pelo contrário, permitindo que os capitalistas nacionais também crescessem,
conseguiu incluir milhões de pessoas que viviam na pobreza ou abaixo dela na
sociedade de consumo.
Aqui
houve a falha, principalmente do PT, de não ter investido fortemente na
educação política das massas, propiciando melhor compreensão do intrincado e
antigo jogo entre elites e povo, obsessão teórica de Darcy Ribeiro com seus
estudos sobre a formação do povo brasileiro.
O
mensalão não contribuiu para tornar o país melhor, pelo contrário, ele atrasou
a agenda desenvolvimentista de Lula e tornou a política desacreditada, na
medida em que sua narrativa tornou o PT igual aos outros partidos. Pior até que
os outros, considerando-se a área ética que o escândalo dilacerou.
Dez
anos depois, o PT não conseguiu, e agora dificilmente o conseguirá, corrigir as
distorções da narrativa, iniciada com a entrevista de Roberto Jefferson.
Houve
sim, um valerioduto, um grande caixa oculto utilizado para enfrentar os custos
da política. Custos financeiros, que vinham da própria campanha de Lula, que
deixou dívidas. Depois, do custo das alianças para a eleição municipal de 2004.
Hoje mesmo, em sua entrevista à Folha, Jefferson confessa o acordo pelo qual
negociou o recebimento de 20 milhões de reais para o PTB, dos quais recebeu
apenas uma das parcelas de quatro milhões de reais. Para ter maioria, era
preciso preservar os aliados e os aliados tinham campanhas pela frente. Alguns,
dívidas da eleição para deputado em 2002.
Saiu
dinheiro do valerioduto para tudo isso. Mas não, e isso nunca foi provado, para
o pagamento de uma mesada mensal para os mais de 100 deputados de que o PT
precisaria para compor sua maioria. Dizer que não houve o mensalão
enquanto tal não é negar o ilícito, que existiu, mas foi de outra natureza.
Foi preciso burilar a linguagem. Falar em caixa dois não comove as
massas. Falar em mensalão, mesada mensal, saco de dinheiro, isso sim, arranca
suspiros de indignação.
A
narrativa começou com esta metáfora forte e seguiu com outras distorções
importantes. O dinheiro do Visanet, distribuindo pelo fundo privado Visa, virou
dinheiro público. Apropriar-se dele para pagar mesadas seria crime do mesmo
modo mas virão aí, sob a luz, o inquérito 2474, por muitos anos trancafiado por
Joaquim Barbosa, e o pedido de ressarcimento do Banco do Brasil. Eles
mostrarão o verdadeiro tamanho dos 73,8 milhões que teriam sido inteiramente
desviados para o valerioduto.
José
Dirceu mandou fazer tudo isso? Cadê a prova? Não tem importância. Recorramos à
teoria do domínio do fato, embora até seu autor discorde da forma de
aplicação. José Genoíno ficou fico? Não, continuou pobre como ao nascer.
Mas assinou promissórias de empréstimos junto ao Banco Rural. Eles eram falsos,
fictícios? Então por que o PT os honrou, terminando de pagá-los mesmo depois do
escândalo?
João
Paulo tinha um assessor, o jornalista Luiz Costa Pinto. Como muitos, inclusive
nos ministérios, na era FHC, foi remunerado pela agência de comunicação que
atendia ao órgão. A agência de Valério. Isso virou, para João Paulo, crime de
peculato. Apropriar-se da coisa pública para fins privados.
E
assim segue a narrativa, que poucos quiseram discutir. Melhor aceitá-la, para
quê discutir se vai produzir os efeitos desejados? E produziu. Muito mais que a
prisão destes e de outros – inclusive aqueles publicitários que estão
esquecidos na Papuda, Ramon e Cristiano Paz.
Em
quatro meses de julgamento, transmitido ao vivo e a cores, os ministros
estiveram sempre sob forte pressão da mídia. Inclusive mais tarde, na fase dos
embargos, quando absolveram os réus do núcleo político do crime de formação de
quadrilha. Nunca tiveram tempo de conhecer todos os fatos envolvidos, todas as
provas incluídas entre os ais de 250 mil documentos do processo. Por exemplo,
entenderam que Marcos Valério apossou-se de R$ 2,9 milhões devolvidos por
empresas de televisão como Bônus de Volume, o famoso BV do mundo publicitário.
Mas não apareceu um profissional do ramo para dizer que o BV sempre foi de
propriedade da agência de publicidade, uma espécie de comissão paga pela
emissora a quem nela veicula.
Mas
não estão nas prisões ou nas penas impostas aos réus, na ausência de provas ou
superdosadas, o mal do mensalão. Estes são danos individuais. O que ele trouxe
de nefasto foi a descrença na política, o desprezo pelos partidos como um todo,
o sentimento de que a elite política é um amontoado de larápios. Como construir
uma democracia se o eleitorado pensa assim?
Lula
reelegeu-se e elegeu Dilma pela força de seu legado, que vem se esfarinhando
neste segundo governo Dilma. Aí estamos com um Congresso que é dos mais
conservadores que o país já teve depois da redemocratização. O povo os elegeu
na onda da descrença. Se todos são ruins, não votarei no que promete o novo, no
que prega mudanças, mas neste que fala aos meus instintos. E assim se
fortaleceram no Congresso os moralistas, a bancada da bala, a dos evangélicos
fundamentalistas e intolerantes, e a dos endinheirados. E assim se tenta
agora uma reforma política que, apesar de todas as evidências de que o mensalão
foi feito para financiar a política, mantém e até constitucionaliza o
financiamento privado das campanhas eleitorais. Só falta mesmo que aprovem o
fim do voto obrigatório para que tenhamos uma democracia de poucos e para
poucos. Mas com o mensalão e o que veio depois, o apetite eleitoral
realmente diminuiu. Esta é a pior sobra do mensalão.
*Tereza Cruvinel atua no jornalismo
político desde 1980, com passagem por diferentes veículos. Entre 1986 e 2007, assinou
a coluna “Panorama Político”, no Jornal O Globo, e foi comentarista da
Globonews. Implantou a Empresa Brasil de Comunicação - EBC - e seu principal
canal público, a TV Brasil, presidindo-a no período de 2007 a 2011. Encerrou o
mandato e retornou ao colunismo político no Correio Braziliense (2012-2014).
Atualmente, é comentarista da RedeTV e agora colunista associada ao Brasil 247.
0 COMENTÁRIOS:
Postar um comentário
O comentário não representa a opinião do blog; a responsabilidade é do autor da mensagem. Ofensas pessoais, mensagens preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, ou ainda acusações levianas não serão aceitas. O objetivo do painel de comentários é promover o debate mais livre possível, respeitando o mínimo de bom senso e civilidade. O Redator-Chefe deste CORREIO poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema proposto.