Elites políticas e
mídia comandam o espetáculo como se a questão tratasse da Justiça na sociedade,
mas o que fazem é tão somente fomentar a ilusão imprescindível ao funcionamento
do sistema.
*Por Hamilton Octavio de Souza em www.cartamaior.com.br
O Supremo Tribunal Federal e o mensalão
estão na boca do povo. São mais comentados do que as traições conjugais da
novela das 9 e do que as tragédias reais verificadas no Brasil, entre as quais
a de filhos que matam os pais e as de pais que matam os filhos. Afinal, o
mensalão empolga a opinião pública porque – entre tantos outros casos de
corrupção descobertos nos últimos vinte anos – contém ingredientes para todos
os gostos: tem políticos, publicitários e banqueiros envolvidos, tem dinheiro
público, tem compra e venda de apoio e tem a direita que descobriu que pode
futricar o PT porque seu alto comando fez as mesmas coisas que a direita faz
desde a proclamação da República.
Com tais ingredientes está aí um enredo
espetacular para a grande imprensa conservadora, eterna manipuladora, que é a
oportunidade de posar em praça pública como sendo o destemido cavalheiro
defensor da verdade e da Justiça, paladino da moralização política e da punição
exemplar dos criminosos de todas as espécies. Da mesma forma, o STF, que desde
sempre não passa de um repositório de reacionários de vários calibres,
descobriu que poderia construir uma imagem simpática do Poder Judiciário, menos
elitista e menos classista, mais ao gosto do povo, se levasse para o seu palco
o inusitado show, e, ao mesmo tempo, dar boa lição aos que ousaram reproduzir,
em nome da esquerda, práticas consagradas pela direita.
É claro que o espetáculo mobiliza as
massas, acirra as paixões, entra nos meandros típicos das mais candentes
telenovelas, quando todos se sentem atraídos para opinar sobre os mais sórdidos
detalhes, onde se embala o pseudoconhecimento técnico, a teia ardilosa de mil
conspirações, os trejeitos desempenhados pelos atores, alguns mais convincentes
e outros simples canastrãos, todos a bailar num circo dominado por figurinos
caros, planejada formalidade cenográfica e linguajar ultrajante para delírio
das torcidas do Corinthians e do Flamengo. Nós, o povo, adoramos os rituais dos
ricos e famosos, assim como histórias da aristocracia.
Longe do foro privilegiado do mensalão
e das câmeras de TV, todos os dias milhares de brasileiros são condenados pelo
país afora, pelos mais variados crimes, por juízes de primeira instância,
tribunais regionais e estaduais e por tribunais superiores. São crimes de toda
ordem: contra o patrimônio (roubos, furtos, estelionatos etc), contra as
pessoas (homicídios, lesões corporais, estupros etc), contra os costumes
(drogas, pornografia, jogo do bicho etc). A grande maioria dos casos tem
processo sumário, sem qualquer trabalho esmerado de apuração, sem defesa
regiamente remunerada, sem maiores apelações, sem embargos infringentes. O
Brasil tem mais de 500 mil pessoas encarceradas, é o terceiro maior contingente
do mundo, sem contar os condenados a prestação de serviços sociais e os que
cumprem pena em regime aberto.
Diferentemente do que acontece no
processo do mensalão, quando todo o show está voltado para mostrar ao mundo o
meticuloso, denso, profundo e cuidadoso funcionamento da Justiça no Brasil, no
rame-rame do cidadão comum o que se vê é um grande aparato classista e
partidário, elitista e indolente, a fazer às vezes de Judiciário para demarcar
de forma bem clara na sociedade os que devem ser criminalizados e punidos e os
que devem ser protegidos pelo sistema. Na prática, a questão da Justiça não tem
a menor importância numa sociedade marcadamente discriminatória. E já que a
Justiça não trata do dia-a-dia do povo brasileiro, já que só os pobres são
rigidamente castigados, o show do STF precisa colocar no imaginário da
sociedade a ilusão de que a Justiça reina igualmente para todos sem distinção
de condição social, classe, raça, cor ou credo.
Quantos empresários estão presos e
condenados pelos crimes de sonegação fiscal, evasão de divisas e lavagem de
dinheiro? Quantos banqueiros cumprem penas por crimes de agiotagem e extorsão
de seus clientes? Por que o judiciário é extremamente lento nos julgamentos de
desvios de dinheiro público e formação de cartéis nas concorrências do Estado?
Por que as lavanderias do Banco Opportunity e da Camargo Corrêa dormem em berço
esplêndido? Por que os casos do mensalão do PSDB e do mensalão do DEM até hoje
não chegaram aos tribunais? Por que as fortunas surrupiadas pelo Maluf e pelo
juiz Nicolau, entre tantas outras roubalheiras, não foram devolvidas aos cofres
públicos?
O julgamento do STF, que bate recordes
de ibope desde meados de 2012, cumpre uma função alimentadora do sistema
dominante, fortalece a crença de que a equidade de todos perante a lei é algo
real, concreto, e que toda punição, quando acontece, é porque passou por uma
malha fina cheia de critérios para defender a sociedade com o máximo de
sobriedade e serenidade. Mesmo a torcida pela obediência integral aos direitos,
a possibilidade da impunidade e a eterna desconfiança – baseada na sabedoria
popular – de que tudo vai mesmo terminar em pizza, tudo concorre para o logro,
para a triste fantasia de uma Justiça que não existe na vida real e de um
sistema que não visa, em nenhuma hipótese, a generalização das mesmas condições
para todos.
Se alguém imagina que o mesmo
tratamento dado aos réus do mensalão será estendido aos milhares de cidadãos
comuns acusados e pegos por algum crime, pode tirar o cavalo da chuva. Se nem
mesmo o STF tem qualquer pretensão de fazer Justiça aos réus de foro
privilegiado, mas tão somente sedimentar na população a clara sensação de que a
Justiça pode alcançar a todos, indistintamente, é evidente que o que se faz
rotineiramente pelo país afora é pegar os desprotegidos em geral para reforçar
o papel assustador e punitivo do Estado sobre aqueles que precisam ser
controlados e sufocados para que não se rebelem contra a desigualdade do
sistema.
Seja qual for o resultado do julgamento
do mensalão, com prisão ou sem prisão, não altera em nada a correlação da luta
de classes no país, não muda nem pra melhor nem pra pior as condições de vida
da maioria do povo, não estabelece nenhum novo referencial na ética pública, no
jogo político-eleitoral, na atuação partidária ou na relação entre os poderes
da República; não vai tornar o STF melhor do que aquilo que sempre foi ou em
algo minimamente confiável para a grande maioria do povo; também não vai tornar
o PT depurado daqueles que se embrenharam nos equívocos políticos de conduzir
um partido nascido dos trabalhadores para a vala comum da ordem burguesa. O
acerto de contas é entre os grupos dirigentes, tanto é que juízes e réus se
revezam nos papéis de mocinhos e bandidos – para a diversão das torcidas.
O show vale enquanto show, pois tem lá
as suas emoções e esmeradas performances. A mídia conservadora deita e rola com
o espetáculo. Mas é recomendável que não confundamos um enredo de ficção com a
dura realidade que embala a vida da grande maioria. Para falar em Justiça, no
Brasil, é preciso primeiro indagar quando, onde e para quem?
*Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.